sábado, 29 de outubro de 2005


"Deux Soeurs", de Hélène de Beauvoir

Discussão de “O Sangue dos Outros”, de Simone de Beauvoir


Os últimos meses têm sido agrestes, em termos de trabalho. Mas ainda assi não queria que não ficasse testemunho da discussão, já distante no tempo, de “O Sangue dos Outros”, de Simone de Beauvoir. O que se segue é uma tentativa de tornar um pouco mais compostinhas as poucas notas que tirei durante a reunião.
No geral, as opiniões foram favoráveis embora algumas leitoras tenham manifestado alguma desilusão. Sentiram-se, de certa forma, defraudadas pois, tendo em conta que Simone de Beauvoir é essencialmente conhecida pelas suas ideias feministas, as leitoras acharam que as figuras femininas do romance não são representadas numa luz muito favorável. Particularmente exasperante é a figura de Hélène, que apesar de sofrer uma grande alteração ao longo da narrativa, tornando-se mais madura, não deixa de ser um tanto mimada, provocando alguma rejeição da personagem. Para essa rejeição em muito contribui também a sua ambiguidade moral, manifestada na colaboração com os nazis.

Ana Lúcia sublinhou a lucidez do livro em relação aos podres da natureza humana.

Está patente a impossibilidade de qualquer pessoa de ter a consciência tranquila. Enquanto houver sofrimento à nossa volta, e sempre o haverá, não poderemos ter a consciência tranquila porque nunca saberemos se poderíamos ter feito mais para mitigar esse sofrimento. Isto faz-me lembrar, agora à posteriori, uma cena do filme de Spielberg, “A Lista de Schindler”, em que, já quase no final, depois de ter salvo centenas de pessoas de um triste fim nos campos de concentração nazi, Schindler agarra o seu relógio de pulso e diz com frustração que se o tivesse vendido poderia ter salvo mais uma outra vida. Talvez sejam mesmo as pessoas que mais fazem pelos outros as que mais consciência têm do que fica por fazer…

Atitude de submissão.
Quando ele é conquistado ela sente-se verdadeiramente mulher “A mulher não nasce mulher, torna-se mulher”
Livro de época, já não se escreve assim.

Somos responsáveis pelos outros.
Fundamento do princípio de tolerância do século XX.
Ideia da culpa – grau de responsabilidade
Noção do Cristianismo


Lembrámos a figura de Álvaro Cunhal e as analogias com o protagonista– a vida, a luta, a liberdade, ambos provenientes de família burguesa.

Foram referidos ainda alguns pormenores biográficos de Simone e Sartre, como, por exemplo, o seu hábito nas cartas que trocavam entre si de dizer mal das amantes que partilhavam. Simone foi acusada de corrupção de menores pela mãe de uma dessas pobres raparigas o que causou a sua expulsão do ensino. Descreviam os seus amantes como “pessoazinhas fracas” demonstrando uma grande arrogância intelectual e falta de auto-censura.


Referimos uma curiosidade: Hélène de Beauvoir, a irmã de Simone, viveu um ano e meio em Faro e foi professora na Aliance Française e no Liceu. Notabilizou-se também como pintora
Beauvoir terá escrito “O Sangue dos Outros” numa altura em que o fim da guerra ainda era incerto, mas através da personagem de Jean ela mostrou o seu apoio à resistência francesa.
O livro foi adaptado a fime em 1982 por Claude Chabrol, com Jodie Foster como Hélène e Michael Ontkean como Jean.

Pedimos às nossas leitoras professoras de Filosofia para nos darem uma noção breve do que é o existencialismo, por nos parecer fundamental para a compreensão da obra. A Ana fê-lo de forma bastante organizada e sucinta. Na altura estive tão interessada a ouvir que não tomei notas decentes, pelo que serei incapaz de reproduzir. Fica o obrigada pela intervenção. Aqui ficam alguns dos tópicos que a Ana focou:
- Grande questão filosófica – qual o sentido da vida?
- Prende-se com a consciência do tempo, da finitude.
- Heidegger – homem como ser para a morte. A morte é tão natural como a vida
- Kirkegaard – existência de situações limite, dor, angústia
Procura sentido nas experiências de mais ser (alegria e amor) e menos ser (limite).
- À pergunta “existe sentido para a vida?” alguns respondem de forma positiva outros de forma negativa.
- Para Camus não existe sentido para a vida. Remete para o mito de Sísifo (cf. “O Estrangeiro” e “A Queda”). A vida é um absurdo a comédia de um ser humano à busca de um sentido – o equilíbrio emocional que depende do sentido e a própria vida não tem sentido. O mais rápido e mais cobarde é desistirmos. Sísifo portou-se mal e foi condenado a empurrar um pedregulho por um monte acima. Camus compara a vida a esse vazio. O que deve Sísifo fazer? Suicidar-se? Essa é a solução mais fácil. Perante algo que sabe como vai terminar assume a tarefa de executar a acção absurda e de cabeça erguida.
- Há os que encontram sentido na transcendência – existencialistas cristãos.
- Para Sartre é o homem que constrói o sentido da vida – ideais ecológicos, justiça social, etc.

A única volta a dar – viver plenamente o absurdo.

O Jean não vive bem com o peso da decisão. Vive a liberdade como uma condenação
O do capítulo V termina com uma passagem lindíssima, que vale a pena recordar:
“Estavas nos meus braços, e eu tinha o coração pesado por causa daqueles frouxos rumores de festa, e porque te mentia. Esmagado por essas coisas que existiam apesar de mim e das quais apenas a minha angústia me separava. Não há mais nada. Nesta cama, mais ninguém; perante mim, um abismo de nada. E a angústia explode, sozinha no vazio, para além de todas as coisas desvanecidas. Estou sozinho. Eu sou esta angústia que existe por si só, apesar de mim; confundo-me com esta existência cega. Apesar de mim, e contudo não jorrando senão de mim. Recuso-me a existir: existo. Decido existir: existo. Recuso. Decido. Existo. Haverá uma alvorada.”

segunda-feira, 24 de outubro de 2005


Acabei de ler uma notícia no Público sobre um dos nossos autores:


Literatura
Turco Orhan Pamuk recebe Prémio da Paz das editoras alemãs
23.10.2005 - 18h59 AFP



O escritor turco Orhan Pamuk recebeu hoje, em Franckfurt, o prestigioso Prémio da Paz de 2005 das editoras alemãs, à margem da Feira do Livro, evento que termina hoje.

Dieter Schormann, director da Associação das Editoras alemãs, considera que o escritor, de 53 anos, é uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. “Orhan Pamuk segue os traços do Ocidente no Oriente e vice-versa”, explicou.

Pamuk defendeu, mais uma vez, a adesão do seu país à União Europeia, criticando indirectamente aqueles que na Alemanha se pronunciaram contra a integração da Turquia. O sentimento anti-turco na Europa “leva, infelizmente, ao desenvolvimento na Turquia de um nacionalismo anti-europeu”, salientou num discurso proferido na igreja de São Paulo em Franckfurt.

Pamuk, actualmente a viver em Istambul, deverá apresentar-se a tribunal em Dezembro por causa de umas declarações suas sobre a morte de milhares de curdos e arménios na Turquia. O escritor é acusado de “insulto deliberado contra a identidade turca”.

O prémio, que distinguiu recentemente o húngaro Peter Esterhazy e a norte-americana Susan Sontag, passa este ano para um valor de 25 mil euros contra os 15 mil até agora.

Pamuk é o segundo turco a receber este galardão, depois de Yachar Kemal em 1997.

terça-feira, 28 de junho de 2005

Tal como tinha prometido no texto da discussão sobre Cassandra, pedi à Ana o tal texto de Fernando Savater em que este, a propósito do comportamento das térmitas e de Heitor durante o cerco de Tróia, explica a diferença entre fazer e agir. É longo mas bastante interessante:


FAZER OU AGIR?

Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste falar das térmitas, essas formigas-brancas que em África constroem formigueiros impressionantes, com vários metros de altura e duros como pedra. Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não ter a couraça de quitina que protege outros insectos, o formigueiro serve-lhes de carapaça colectiva contra certas formigas inimigas, mais bem armadas do que elas. Mas por vezes um dos formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um elefante (os elefantes, que havemos nós de fazer, gostam de coçar os flancos nas termiteiras). A seguir, as térmicas-operário começam a trabalhar para reconstruir a fortaleza afectada, e fazem-no com toda a pressa. Entretanto, já as grandes formigas inimigas se lançam ao assalto. As térmitas-soldado saem em defesa da sua tribo e tentam deter as inimigas. Como nem no tamanho nem no armamento podem competir com elas, penduram-se nas assaltantes tentando travar o mais possível o seu avanço, enquanto ferozes mandíbulas invasoras as vão despedaçando. As operárias trabalham com toda a velocidade e esforçam-se por fechar de novo a termiteira derrubada... mas fecham-na deixando de fora as pobres e heróicas térmitas-soldado, que sacrificam as suas vidas pela segurança das restantes formigas. Não merecerão estas formigas-soldado pelo menos uma medalha? Não será justo dizer que são valentes?

Mudo agora de cenário, mas não de assunto. Na llíada, Homero conta a história de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, que espera a pé firme fora das muralhas da sua cidade Aquiles, o enfurecido campeão dos Aqueus, embora sabendo que Aquiles é mais forte do que ele e que vai provavelmente matá-lo. Fá-lo para cumprir o seu dever, que consiste em defender a família e os concidadãos do terrível assaltante. Ninguém tem dúvidas: Heitor é um herói, um homem valente como deve ser. Mas será Heitor heróico e valente da mesma maneira que as térmitas-soldado, cuja gesta milhões de vezes repetida nenhum Homem se deu ao trabalho de contar? Não faz Heitor, afinal de contas, a mesma coisa que qualquer uma das térmicas anónimas? Porque nos parece o seu valor mais autêntico e mais difícil do que o dos insectos? Qual é a diferença entre um e outro caso?

Muito simplesmente, a diferença assenta no facto de as térmitas-soldado lutarem e morrerem porque têm que o fazer, sem que possam evitá-lo (como a aranha come a mosca). Heitor, pelo seu lado, sai para enfrentar Aquiles porque quer. As térmitas-soldado não podem desertar, nem revoltar-se, nem fazer cera para que outras vão em seu lugar: estão programadas necessariamente pela Natureza para cumprirem a sua heróica missão. O caso de Heitor é distinto. Poderia dizer que está doente ou que não tem vontade de se bater com alguém mais forte do que ele. Talvez os seus concidadãos lhe chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que outro plano via ele para deter Aquiles, mas é indubitável que Heitor tem a possibilidade de se recusar a ser herói. Por muita pressão que os restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se supõe que deve fazer: não está programado para ser herói, nem o está seja que homem for. Daí que o seu gesto tenha mérito e que Homem nos conte a sua história com uma emoção épica. Ao contrário das cérmitas, dizemos que Heitor é livre e por isso admiramos a sua coragem.

Fernando Savater, Ética para um Jovem. Ed. Presença. pp. 21 e 22.

domingo, 26 de junho de 2005


A nossa leitura deste mês! Posted by Hello

Para breve, muito breve, num blogue perto de si, o resumo da discussão de "O Sangue dos Outros".

Entretanto, aqui fica a lista dos livros sugeridos hoje para a leitura deste mês:

- "Ravelstein", de Saul Bellow, já repetente.

- "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", pela terceira vez...

- "Sábado", de Ian McEwan

- "The Line of Beauty", de Alan Hollinghurst

- "A festa das rosas", de Indu Sundaresan

- "Os bons augúrios", de Neil Gaiman e Teri Pratchet

- "Rafael", de Manuel Alegre, esse clássico, sempre proposto (calma, Manuel, chegará a tua vez...)

A votação foi disputada mas decidida logo à primeira, tendo vencido "A misteriosa Chama da Rainha Loana", de Umberto Eco! É um senhor calhamaço, por isso mãos à obra!!


Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre Posted by Hello


Simone de Beauvoir Posted by Hello

As sugestões de leitura surgidas na reunião em que se discutiu a “Cassandra” foram:


- “Rafael”, de Manuel Alegre – um clássico entre as sugestões da Ana Lúcia!

- “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco

- “A Bíblia envenenada”, de Barbara Kingsolver

- “Ravelstein”, de Saul Bellow

- “A noite escura mais eu” ou “Estrutura da bola de sabão”, de Lígia Fagundes Telles

- “Intimidades” uma antologia de contos de escritoras portuguesas e brasileiras

- “O sangue dos outros”, de Simone de Beauvoir

- “O teu rosto amanhã” ou “Febre e lança”, de Javier Marias

- “Longe de Manaus”, de Francisco José Viegas

- “O Náufrago”, de Thomas Bernhard

- “Amigos até ao fim”, de John Le Carré


A votação foi bastante renhida, com Saul Bellow, Thomas Bernhard, John Le Carrée e Simone de Beauvoir a empatarem a uma primeira votação mas acabou por vencer “O Sangue dos Outros” de Simone de Beauvoir!

E continuo para Bingo dando início à segunda tarefa árdua da tarde, que é deixar um testemunho da passagem de Cassandra, de Christa Wolf, pelo "Chá de Letras".

Ai, pobre de mim, devo admitir que já pouco me lembro da discussão de Cassandra… Ao contrário de Os Jardins da Memória, que talvez porque não tenha reunido consensos deu origem àquela que foi talvez a discussão mais animada do clube de leitura, a Cassandra não deu azo a grande discussão. Talvez porque os temas que levanta com mais premência – a questão da importância de dar voz à mulher e de como as visões femininas do mundo podem contribuir para a construção de uma sociedade melhor – são consensuais entre as leitoras do Chá de Letras.

Como, de facto, já não me lembro muito bem do que foi discutido na reunião, vou optar por transcrever aqui a ficha de leitura que elaborei à medida que fui lendo o livro (como costumo fazer com os livros que posso ter necessidade de citar na minha tese).

As obras em que se inspirou Christa Wolf para compor Cassandra:

Ilíada, de Homero
As Troianas, de Eurípides
Troilus and Cressida, de Shakespeare, 1599
La Guerre de Troie n'aura pas lieu, de Giraudoux, 1935
Griechische Mythologie, de Robert von Ranke-Graves

Os temas mais importantes:

I - Matriarcado versus Patriarcado

As principais características do Patriarcado segundo Wolf:
1 - Posse
2 - Hierarquia
3 - Cultura da concorrência, esforço, eficiência
4 - Gigantismo - a "mega-máquina" das estruturas, a burocracia.
5 - Domínio - exploração de outras culturas, "colonização". A "colonização da mulher pelo homem".

Posição de Christa Wolf - crítica no que diz respeito às estruturas patriarcais. Céptica em relação a valores (herdados do iluminismo), como progresso, racionalidade, êxito e pensamento instrumental.
A questão que coloca: devem as mulheres desejar ser integradas no aparelho hierárquico patriarcal? Querem fazer o que fazem os homens?

As mulheres têm, segundo Wolf, uma maior sensibilidade, espontaneidade e uma escala de valores mais humana. Rejeita o feminismo mais militante ou a idealização de etapas da humanidade pré-racionais. Defende a emancipação de homens e mulheres, ou seja, o reconhecimento que têm necessidades diferentes e que não só o homem deve ser modelo para a humanidade, mas sim também a mulher. Vê novas formas de convivência, para além da luta e domínio.

Vê na Guerra de Tróia a passagem de um paradigma matriarcal para um paradigma patriarcal. Os Aqueus (Gregos) personificam já uma sociedade patriarcal completamente formada e levada ao extremo, nomeadamente no carácter agressivo, explorador e sádico (simbolizados pela figura do seu herói máximo, Aquiles, que é visto aqui em toda a sua crueldade: a morte de Troilo provoca-lhe um extremo prazer sexual; profana o cadáver de Pentesileia, exige o sacrifício de Polixena sobre o seu túmulo, etc. Os troianos não só capitulam perante os gregos como, ao longo da guerra, vão também perdendo os traços mais matriarcais da sua cultura (ex. a posição do rei Príamo e da rainha Hécuba no conselho: no início a rainha ocupa o trono e o rei senta-se placidamente num banco a seu lado. Vai perdendo essa posição dominadora até que, pura e simplesmente é banida do conselho a pretexto de que a guerra não é assunto de mulheres).

Esta mudança de paradigma na sociedade troiana é simbolizada pela figura e Eumelo (aliás uma personagem completamente inventada pela autora). O seu ascendente cada vez maior sobre o rei Príamo confere-lhe a si e ao seu corpo de guardas uma preponderância cada vez maior no funcionamento da cidadela e do palácio. A organização militar é acompanhada do crescimento da burocracia: funcionários, servidores do tempo, escribas, cantores e bardos (e as suas versões propagandísticas das três expedições de barco e do desenrolar dos acontecimentos bélicos ocupam um lugar cada vez mais importante).

Vestígios de uma sociedade matriarcal:
- A já mencionada posição que Hécuba ocupa no conselho
- A casa de Arisbe, onde viveu o meio-irmão de Cassandra, Ésaco
- O respeito pelas "três comadres ancestrais", as parteiras
- O secreto culto a Cibele - cena da êxtase colectiva

A mudança de paradigma é fundamental para a sobrevivência da espécie humana:
"Ich sage ihnen: Wenn ihr aufhörn könnt zu siegen, word diese eure Stadt bestehn" (p. 138)
"Digo-lhes: Se vocês conseguirem deixar de vencer, esta vossa cidade sobreviverá." (p. 146)

II - O mundo das grutas do Escamandro: uma Utopia real?

Modelo de uma esperança concreta. Não de uma visão do futuro, mas de uma oportunidade aproveitada, aqui e agora, no "meio da guerra".
A comunidade da margem do Escamandro procura viver no meio da morte e da destruição:
"Es gibt Zeitenlöcher. Dies ist so eines, hier und jetzt. Wir dürfen es nicht ungenutzt vergehen lassen." (p. 147) / "(…) há buracos no tempo. Estamos num deles, aqui e agora. E não o devemos desperdiçar." (p. 156)

"Zwischen Töten und Sterben ist ein Drittes: Leben"./

Faltam, nesta comunidade, os traços característicos do Patriarcado.
Os seus membros vivem fora do mundo civilizacional da cidadela, na natureza, simbolizada pela gruta como um mundo feminino.
É um mundo heterogéneo do ponto de vista social e étnico.
Vivem de forma despojada e sem noção de propriedade privada.
O trabalho individual sustenta as necessidades básicas do colectivo mas também serve como forma de aprendizagem.
Não existem hierarquias e domínios mas respeito por figuras de autoridade (Anquises e Arisbe).
Não há concorrência mas diferenças de opiniões.
Modelo de relacionamento entre homens e mulheres: Cassandra e Eneias: A reciprocidade: "Seine Hand an meiner Wange, meine Wange in seiner Hand" (A sua mão na minha face, a minha face na sua mão), "Aineias Kassandra. Kassandra Aineias"


Da discussão no clube de leitura, aquilo que me lembro melhor foi uma intervenção da Ana em que refere um exemplo dado por Fernando Savater, o filósofo espanhol contemporâneo que tem vindo a publicar bastante nos últimos anos e tem vindo a suscitar um interesse crescente, em “Ética para um jovem” no qual explica a distinção entre fazer e agir pela acção de Heitor ao enfrentar Aquiles. Vou pedir à Ana que me forneça o excerto do livro, que irei, em breve, colocar aqui para enriquecer este texto.

A Paula referiu a tese de doutoramento da Teresa Beleza, intitulada Complexo de Cassandra, e que originou a última alteração do código penal no que diz respeito à punição de crimes sexuais.

A propósito de Complexo de Cassandra, referi um complexo que vi uma vez descrito num texto de psiquiatria com o mesmo nome. Referia-se àquelas pessoas que pregam o fim do mundo e em quem geralmente nunca ninguém acredita.

A este propósito referimos ainda que talvez a maior aprendizagem que Cassandra tenha feito ao longo da acção tenha sido a do silêncio. Aprender o silêncio pode ser uma lição importante para salvaguardar os nossos interesses.

E pronto, desta vez é tudo, tenho pena de não ter tirado mais notas ao longo da discussão. Em todo o caso, e de uma forma geral, penso que o livro agradou a todas as leitoras, até porque se seguiu a dois livros de difícil “digestão” (“Eu hei-de amar uma pedra” e “Os Jardins da Memória”) e constituiu comparativamente uma leitura bastante leve. Os aspectos que mais agradaram foram as referências à mitologia grega, que constitui, de certa forma, um dos pilares da nossa civilização, e enquanto modelos/estereótipos da acção humana. As figuras mitológicas estiveram ainda na base de algumas das metanarrativas (como a Ilíada, a Odisseia ou a Eneida) que continuam a fascinar os seus leitores e cujas histórias são recontadas e perpetuadas na literatura desde então. Também a discussão da condição feminina constituiu uma mais valia da leitura desta obra. Além disso, algumas leitoras manifestaram o agrado pela oportunidade de “visitar” a obra de uma autora tão conceituada no seu país mas que tem pouca difusão em Portugal.

Com um atraso que até dói, aqui fica o resumo da discussão de Os Jardins da Memória (lembram-se? Aquele livro que lemos há tanto tempo?...) Enfim, mais vale tarde que nunca!


Mais uma vez, Os Jardins da Memória, de Orhan Pamuk, não reuniram consenso entre as leitoras do Chá de Letras. A maior parte teve dificuldade em acabar o livro, seja pela sua extensão, seja pela densidade do texto, que obrigava a uma leitura continuada e atenta.

A razão para a escolha deste romance como leitura do mês havia sido vontade de alargar o âmbito do clube a romances provenientes de outras culturas distintas. De facto, Pamuk, frequentemente comparado com Proust, é o romancista turco mais galardoado a nível nacional e internacional e que alegadamente fará a ponte entre o Ocidente e o Oriente, a modernidade e a tradição, o passado e o futuro. Neste aspecto, todas as leitoras foram unânimes em reconhecer que o faz de forma primorosa, e que a “mais valia” retirada da sua leitura terá sido um maior contacto com uma cultura tão diferente e tão complexa, e com a qual necessariamente teremos que criar laços, a concretizar-se a entrada da Turquia na União Europeia.

Foi, aliás, esse o tema, lateral à narrativa, que mais discussão suscitou durante a reunião. A questão mais premente foi a possibilidade de manutenção da cultura turca após a adesão à UE. A rigidez das normas comunitárias no que diz respeito, por exemplo, à uniformização dos produtos agrícolas, ou a normas de sanidade, colocará em risco instituições turcas tão importantes como, por exemplo, os mercados, onde reina um esfusiante caos e onde são típicas “as moscas na carne”, o exemplo que nos lembrámos para simbolizar essa incompatibilidade com as normas comunitárias de sanidade. Discutimos até que ponto é que será de perpetuar essas “moscas na carne” ou se certos hábitos culturais não serão mesmo de banir. Fazendo a transposição para o espaço português, foi também discutido o costume da matança do porco, enquanto evento familiar e festivo, e como foi proibido por uma questão sanitária. Estas questões levaram-nos a discutir uma atitude de relativização cultural que leva à desculpabilização de certas práticas como o ostracismo a que são votadas as mulheres, a obrigatoriedade de usar véu ou burka, práticas de amputação sexual, ou outro tipo de costumes que violam os direitos humanos, com o argumento que são parte de uma cultura ancestral a ser preservada a qualquer custo. Distanciámo-nos desta atitude, na medida em que, antes de quaisquer valores culturais específicos de cada povo deverão ser considerados os valores universais que têm a ver com os direitos de cada ser humano à sua dignidade e integridade física e mental.

Por outro lado, também foi lançado o argumento que, partindo do princípio que a União Europeia é um espaço de multiplicidade cultural, e que essa multiplicidade deve ser respeitada e defendida, então talvez seja benéfico que integre também um país islâmico e com uma vertente cultural marcadamente oriental, criando uma oportunidade para que a bipolaridade que vem sendo construída ao longo dos últimos anos, acentuada pelas duas Guerras do Golfo e pela catástrofe do 11 de Setembro, seja atenuada pelo exemplo de convivência num mesmo espaço político e económico que constitui a União Europeia.

No que diz respeito mais concretamente ao livro, as leitoras gostaram particularmente das crónicas escritas supostamente por Djélâl, como a crónica sobre os manequins, com a ideia subjacente da possibilidade da existência de uma sociedade subterrânea, secreta, que se estende ao longo da cidade; a crónica sobre a invasão o desaparecimento das águas do Bósforo, e de todos os dejectos da sociedade que passariam a estar visíveis no seu leito lamacento; ou ainda a crónica sobre a loja de Alladine, que tanto nos faz lembrar as lojecas que havia antigamente em Portugal nas terras mais pequenas onde se podia comprar de tudo e onde toda a espécie de artigos convivia numa alegre confusão.
As crónicas foram consideradas talvez a parte mais interessante do livro, embora, pela sua profusão (cada capítulo de narrativa intercala com uma crónica), tenham sido consideradas por algumas leitoras (incluo-me no grupo) como um entrave à fluidez da leitura. Talvez também pela variedade de temas que encerram as tenhamos considerado excessivas. Por mim, senti muitas vezes que o livro procura albergar demasiados pormenores, demasiados pontos de vista. Talvez tenha sido nesta perspectiva que a Rita afirmou que o livro tinha tudo para ser fascinante, mas que havia algo que falhava. Utilizando uma metáfora culinária, achei que parecia um prato confeccionado com tantos ingredientes, tantos condimentos, que se torna impossível apreciar adequadamente o sabor de cada alimento (logo eu, grande apreciadora da simplicidade e ascetismo da cozinha japonesa…). A meu ver, as crónicas dariam uma leitura semanal deliciosa, mas condensadas num só livro, tornam-se um tanto indigestas. Estejam perfeitamente à vontade para discordar!

Todas nos interrogámos sobre as possíveis interpretações para o facto de todas as personagens principais escreverem com esferográficas de tinta verde. Imediatamente nos veio à ideia a noção do verde enquanto símbolo de esperança. Pensámos, contudo, que poderia ter um qualquer outro significado na cultura turca. Procurei posteriormente em todos os meus dicionários de símbolos, e embora não tenha encontrado nada específico em relação À cultura turca, um dos dicionários referia a importância do verde para o islamismo:

(…) “Verde permaneceu, para os cristãos, a Esperança, virtude teologal. Mas o cristianismo desenvolveu-se em climas temperados, onde a água e a verdura se tornaram banais. O contrário se passa no caso do islamismo, cujas tradições se criaram como miragens, acima da imensidão hostil e ardente dos desertos. A bandeira do Islão é verde; e esta cor constitui para o muçulmano o emblema da Salvação, e o símbolo de todas as maiores riquezas, materiais e espirituais, de que a primeira é a família: verde era, dizem, o manto do enviado de Deus, sob o qual os seus descendentes directos – Fátima, a sua filha, Ali o seu genro, e os seus dois filhos Assan e Hussein – vinham refugiar-se na hora do perigo, razão pela qual lhes chamam ‘os quatro debaixo do manto’: os quatro, isto é, também, os quatro pilares sobre os quais Maomé construiu a sua igreja. (…)
No Islão, o verde é ainda a cor do conhecimento, bem como a do Profeta. Os santos, na sua morada paradisíaca, estão vestidos de verde.” In Chevalier, Jean e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa: Teorema, 1994, p. 683.

Á luz desta explicação, penso que poderemos interpretar essa obsessão com a escrita a verde como mais uma tentativa de manter viva a tradição.

Mais uma vez, deparámo-nos com um livro que se debruça sobre o acto da escrita, a criação literária. Tem sido uma constante nas nossas leituras. Pensamos que se trata, de certa forma, de uma tendência de moda, tal como há uns anos atrás, como dizia a Ana Lúcia com muita graça, eram constantes as referências à homosexualidade. Ainda assim, congratulámo-nos com mais uma perspectiva sobre o, ainda assim, misterioso acto da criação artística.

Apesar de não conhecermos o original, pareceu-nos justo atribuir algumas das incongruências linguísticas à tradução. Eu já havia lido duras críticas às traduções inglesas da obra, e não temos como saber se esta foi traduzida do turco ou de uma outra versão traduzida. Percebemos, por exemplo, que o título não foi minimamente respeitado. Com a ajuda de um pequeno guia da Turquia, percebemos que o título em turco seria “O Livro Negro”, como aliás foi chamado na versão em inglês (The Black Book). E, apesar de, antes de ter iniciado a leitura, considerar o título muito bonito e sugestivo, foi uma das coisas que me foi irritando à medida que avançava na leitura: surgia constantemente mencionada a expressão “jardins da memória” e senti que não havia necessidade de explicar o título de forma tão óbvia. Afinal parece que foi uma liberdade do tradutor, ou da editora.

Gostámos todas particularmente das epígrafes escolhidas para o início de cada capítulo e tomam um especial significado a partir do momento em que a epígrafe do primeiro capítulo é: “Não useis a epígrafe, porque mata o mistério da obra!” seguida de outra que diz: “Se assim deve perecer, só tens que matar o segredo e também o falso profeta que vende o segredo”. Pelo facto de usar e abusar delas, quererá talvez demonstrar que a obra sobrevive para lá do mistério, e para lá do seu autor.

Numa segunda fase da discussão do livro, fizemos uma ronda de opiniões que se revelou bastante profícua. Vou referir apenas algumas das opiniões (aquelas de que ainda me lembro…) A Ana afirmou que gostou particularmente de ver tratado o tema da identidade. Queixou-se de uma certa “overdose” de informação mas realçou a criatividade das crónicas.

A Jennifer considerou a sua experiência de leitura, de uma forma geral, bastante positiva, e destacou a perspectiva diferente da que estamos habituados de lidar com a questão Ocidente/Oriente. A questão é abordada sem a normal atitude paternalista que os ocidentais têm em relação a outras culturas que tendem a ver como folclore. A esse propósito referimos ainda que nos parecia de alguma forma estar inferido no discurso um certo complexo de inferioridade, o discurso do vencido – o Oriente – apesar de surgir aqui e ali a referência ao peso histórico do império otomomano.

A Isabel referiu a dificuldade em avançar na leitura pela estranheza dos nomes das personagens, para os quais não temos referente, e também a dificuldade em compreender algumas referências culturais.

A Ana Lúcia, a leitora que manifestou ter gostado mais deste livro, teve uma intervenção muito interessante em que, de uma forma sucinta fez uma apologia do livro como a voz de um povo e de uma cultura que costuma ser silenciada mas que teve um impacto tremendo na formação da nossa própria cultura. Segundo a Ana Lúcia, o livro constitui um mau presságio para a cultura turca, na medida em que aqueles que a defendem acabam por morrer. Em relação à densidade do livro, a Ana Lúcia vê-a com o reflexo da densidade do próprio país – onde cada “pedra” contém uma infinidade de informação. Relembrou ainda que as origens da filosofia estão naquele que é actualmente território turco, então uma colónia grega.

A Rosária admitiu que lhe custou a entrar na história e que talvez o livro lhe tivesse dito muito mais se já estivesse estado na Turquia, o que ajudaria a identificar muitos mais aspectos. Realçou a intensidade do livro o facto de ser muito visual. Agradou-lhe particularmente a noção de família, simbolizada por aquele prédio onde co-habitava a família descrita na obra e onde se desenrola grande parte da acção.

No geral, todas reconhecemos que ganhámos algo com a leitura deste livro, uma outra perspectiva sobre assuntos tão actuais como o choque civilizacional entre o Ocidente e o Oriente. A discussão foi, desta vez, particularmente animada.

segunda-feira, 13 de junho de 2005

Álvaro Cunhal (1913-2005)


desenho de Álvaro Cunhal. Para sempre entre nós. Posted by Hello

Eugénio de Andrade (1923-2005)

Estou contente, não devo nada à vida,
e a vida deve-me apenas
dez réis de mel coado.
Estamos quites, assim

o corpo já pode descansar: dia
após dia lavrou, semeou,
também colheu, e até
alguma coisa dissipou, o pobre,

pobríssimo animal,
agora de testículos aposentados.
Um dia destes vou-me estender
debaixo da figueira, aquela

que vi exasperada e só, há muitos anos:
pertenço à mesma raça.

Eugénio de Andrade (1923-2005)
in "Branco no Branco", 1984

Para sempre entre nós.

sábado, 7 de maio de 2005


A última imagem de "Himmelfilm: How were the skies like when you were Young?" - o céu visto debaixo de água. Posted by Hello

Acabei de ver uma belíssima curta metragem, no âmbito da extensão do Festival Indie Lisboa. Chama-se "Himmelfilm: How were the skies like when you were young?". São 15 minutos de imagens muito bonitas, filmadas nos quatro cantos do mundo, e do depoimento em voz off de cerca de uma dúzia de pessoas de várias nacionalidades em que cada um fala sobre o que significou e significa para eles o céu. Surgem as mais variadas perspectivas, desde uma pessoa da Somália, para quem o céu sempre significou a ténue esperança de chuva e, consequentemente, de vida para as suas paisagens áridas, a uma mulher da Croácia, que relembra o primeiro dia de guerra, e como o significado de céu mudou drasticamente, passando a constituir o perigo de um ataque aéreo. O alemão (era o Wim Wenders) declarou que sempre tinha sentido uma angústia enorme perante o conceito de céu, porque lhe era impossível conceber a ideia de infinito. Por outro lado, uma outra mulher encara o céu como aquilo que todos temos em comum, sendo que, por muito diferentes que sejamos, estamos todos sob o mesmo céu, enorme, envolvente.
Enfim, deixou-me a pensar. Já agora, o que foi e o que é para vocês o céu?

Aqui fica o pequeno texto de apresentação do filme:
"Himmelfilm: How were the skies like when you were young?"

Most people look immediately out of the window and start to dream, searching between tall buildings for a piece of sky. We collected sounds. Voices from all over the world. Memories from people of their childhood, their home, their sky. Everyone has their own childhood sky. Their own memories, forgotten corners, childhood lairs. Faded and pale like an old color photo from long lost days. Or vivid with color, if you dream yourself away.

And of course the sky is blue. The same everywhere? Always there.

segunda-feira, 2 de maio de 2005

Uma das experiências mais agradáveis do meu fim de semana lisboeta foi um preguiçoso brunch à beira Tejo, na esplanada de uma delicatessen recentemente inaugurada. Uma delícia!
Aqui fica o texto promocional para aguçar o apetite e a curiosidade:

Mercearia Deli Delux
Já era tempo de criar um conceito destes em Lisboa. Deli Delux tem uma irresistível selecção de cogumelos frescos e secos, legumes escolhidos a dedo, frutos exóticos, azeites premiados, molhos italianos, chás, cafés, chocolates exclusivos, caviar, parmesão vintage ou o sublime tallegio... os enchidos, a secção de flores frescas, a extensa garrafeira... Uf! de cortar a respiração! Uma verdadeira enciclopédia de produtos de mercearia e charcutaria . Os mais relaxados podem optar pelo cantinho da cafetaria que tem uma esplanada literalmente geminada com o Tejo , ideal para um fim-de-tarde acompanhado de umas tábuas de queijos e enchidos servidos com um copo de vinho, pão e tostas, ou talvez a versão brunch ao fim -de-semana. Uma tentação!

Mais informações em: www.delidelux.pt

sábado, 30 de abril de 2005

Ontem fui ouvir o Paul Auster. Foi uma agradável surpresa o elevadíssimo interesse do público pelo evento. Quando lá chegámos, por volta das 8:30, 8:40, já uma fila monstruosa quase rodeava o edifício. Persistimos, sempre na contigência de "morrer na praia" e acabarem-se os bilhetes algures à nossa frente. Estava inicialmente previsto para a sala 2 mas acabou por encher todo o grande auditório e, consta que ainda muita gente assistiu à conversa no foyeur, através de ecrãs. Estava curiosa para conhecer o autor mas, devo reconhecê-lo, algo receosa que me desiludisse o homem e me toldasse o prazer da leitura dos seus livros. Afinal esse medo era infundado. Gostei da personagem, o típico nova iorquino, vestido de escuro, algo lacónico, uma voz grave e musical (tão bonita como a sua escrita, diz a Angela). Começou por ler alguns excertos do "Oracle Night", intercalados pela leitura dos mesmos na tradução portuguesa pela escritora Luísa Costa Gomes, pelos vistos uma das grandes amigas portuguesas de Paul Auster (o outro é o produtor, distribuidor e exibidor de cinema Paulo Branco).

Seguiram-se perguntas do público respondidas por ele. Foi interessante, não houve perguntas idiotas, toda a gente se safou lindamente em inglês, e ele foi respondendo, umas vezes de forma mais lacónica do que outras. Foi colocada a questão que algumas de vocês me tinham pedido para fazer: se ele não pretendia algum dia dar um seguimento à história de Sidney Orr e tirá-lo da cave onde ficou encerrado. Respondeu que não, que essa história estava terminada, que ele próprio era um escritor muito diferente do Sidney, e que se este tinha terminado a sua existência fechado na cave era um problema dele e não do Paul Auster.

Outro interveniente colocou-lhe uma pergunta bastante elaborada e que, resumidamente, se tratava de saber se Paul Auster se considerava um escritor existencialista ou pós-modernista. Foi divertido, porque ficou um pouco engasgado com a pergunta. Admitiu com humor não saber o que é um pós-modernista (e quem sabe?...) e acabou por definir os seus romances como "moral adventure stories", classificação que achei muito curiosa.

Uma senhora, com a humildade que costuma caracterizar-nos (na qual me reconheço), simplesmente agradeceu a Paul Auster pelo prazer que os seus livros lhe tinham proporcionado. Foi um momento bonito e que deu azo talvez à mais mais sentida e sensível resposta do autor. Disse Paul Auster que um romance constitui o único sítio onde dois estranhos (escritor e leitor) se podem encontrar de forma absolutamente íntima ("a novel is the only place where two strangers can meet on absolutely intimate terms."). E ainda que o que mais o fascinava na sua profissão de escrever livros era um sentido interno de comunicação com outra alma ("an internal sense of communication with another soul"). Isto porque considera que um livro constitui sempre um acto íntimo de comunicação entre duas pessoas específicas, autor e leitor. Por muitos milhares de pessoas que leiam um livro, em cada acto isolado de leitura, os intervenientes nesse processo de comunicação são sempre e apenas dois ("one person reading another person's words").


E, by the way, sim, está bastante mais envelhecido do que na fotografia que surge nas contracapas dos seus livros há decadas, mas ainda assim um senhor muito distinto para os seus 57 ou 58 anos!

sexta-feira, 29 de abril de 2005


Cassandra, por Evelyn De Morgan, 1898 Posted by Hello

A Ana enviou-nos um interessantíssimo artigo sobre a autora e obra que estamos a ler de momento:


A alma histórica em Cassandra de Christa Wolf


Sílvia Caldeira
Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa

Nascida em 1929 dentro do antigo império alemão, em Warthe, na actual Polónia, Christa Wolf cresce sob a ameaça político- extremista nazi e, ao contrário do que seria de esperar pelo regime, torna-se escritora independente, transformando-se no olhar frio e realista que revela o clima de guerra e o clima social repressivo da antiga RDA. Será esta luz mórbida nazi que dará temática aos três primeiros romances desta escritora: Der Geteile Himmel (1963), Nachdenken uber Christa T.(1969) e Kindheitsmuster (1976).

Em Der Geteile Himmel é-nos exposta a dolorosa divisão interna dos alemães; em Nachdenken uber Christa T. e Kindheitsmuster revela-nos os últimos anos da Segunda Guerra Mundial e a fase inicial da RDA. Em toda a obra de Christa Wolf estará sempre presente o brasão de quem viu e viveu no ambiente sufocante e ameaçador da RDA, no entanto, com Kassandra (1983), Christa Wolf inaugura uma visão ideológico-estrutural reformulada e já muito mais ponderada: a miscigenação do mito e da literatura, do mito e da realidade, para transmitir o eterno reviver da dor da guerra, e quem melhor do que a profetisa condenada a não ser acreditada para o explicar?

Foi com a Guerra de Tróia que pela primeira vez se uniu mito e literatura com realidade e foi esta fatídica guerra que serviu de tema às primeiras obras tradição ocidental, os Poemas Homéricos. Contudo, o que o aedo homérico nos transmite é o ideal heróico daqueles que caem no campo de batalha, o defender másculo da honra e da dignidade, a sede feroz de sangue e de glória dos guerreiros. O que Christa Wolf oferece ao mundo com Kassandra é a visão feminina da guerra, o relato na primeira pessoa de uma das mais importantes princesas de Tróia: a sacerdotisa de Apolo. Cassandra, que no momento derradeiro da sua vida conta a sua experiência da guerra, é a metáfora de todas as mulheres que viveram e das que provavelmente irão viver esse clima aterrador onde pelo seu sexo, considerado fraco, não combatendo a frente inimiga, mas procurando assegurar a estabilidade mínima da sua pátria e acabam sendo humilhadas, insultadas, comandadas como se não soubessem pensar por si, violadas, assassinadas ou abandonadas na vida com uma criança no seio daquele que a violou.

Sob esta visão solitária de uma mulher sobre o seu mundo, Christa Wolf faz renascer com Kassandra o antigo mito grego para nos permitir “medir-nos a nós mesmos”, reconhecermo-nos uns aos outros na “alma histórica”, na alma do mundo. Tendo particular intenção de fazer coincidir o drama de Cassandra com o contexto espiritual alemão, Christa Wolf deixa no ar aquela pergunta que o coração não deixou escrever, mas a mente vislumbrou: estarão todas as mulheres condenadas por um deus impassível a serem-lhe submissas sob a ameaça de jamais serem acreditadas? Será este um castigo vigente só em tempo de guerra? Até onde terá de ir a submissão feminina? Estas são perguntas que a escritora não escreve mas deixa na mente do leitor.

terça-feira, 26 de abril de 2005

Penso que para compreender a “Cassandra” da Christa Wolf convém ter algum conhecimento sobre o mito da Cassandra. Assim, transcrevo aqui a respectiva entrada do meu dicionário de mitologia grega:

Cassandra é filha de Príamo e de Hécuba, e irmã gémea de Heleno. Quando eles nasceram, Príamo e Hécuba deram uma festa no templo de Apolo Timbreu, situado fora de portas, a uma certa distância de Tróia. À tarde, partiram, esquecendo-se das crianças, que passaram a noite no santuário. Na manhã do dia seguinte, quando foram procurá-las, encontraram-nas a dormir, enquanto duas serpentes lhe passavam a língua pelos órgãos dos sentidos, para os “purificar”. Assustados com os gritos dos pais, os animais afastaram-se para os loureiros sagrados que ali havia. Posteriormente, as crianças revelaram o dom da profecia, que lhes tinha sido comunicado pela “purificação” das serpentes.

Outra lenda conta como Cassandra obteve do próprio Apolo o dom da profecia. O deus, enamorado dela, tinha-lhe prometido que lhe ensinaria a adivinhar o futuro, se ela cedesse aos seus desejos. Cassandra aceitou a proposta e recebeu as lições do deus, mas, uma vez ensinada, esquivou-se. Então, Apolo cuspiu-lhe na boca, retirando-lhe, não o dom da profecia, mas sim o da persuasão.

Conta-se, geralmente, que Cassandra era uma profetiza “inspirada”, como a Pítia ou a Sibila. O deus apossava-se dela e ela, em delírio, proferia os seus oráculos. Heleno, pelo contrário, interpretava o futuro pelo meio das aves e de sinais exteriores.

Mencionam-se profecias de Cassandra em cada um dos momentos importantes da história de Tróia: aquando da vinda de Páris, ela predisse que o jovem (que então ainda não era conhecido pela sua verdadeira identidade) havia de trazer a ruína à cidade. Estava Cassandra quase a conseguir que ele fosse executado, quando reconheceu que era filho de Príamo, o que lhe salvou a vida. Mais tarde, quando Páris regressou a Tróia com Helena, ela predisse que este rapto provocaria a perda da cidade. Mas ninguém acreditou nela, como sempre acontecia. Foi ela a primeira a saber, após a morte de Heitor e a embaixada de Príamo a Aquiles, que Príamo voltava com o corpo do filho. Cassandra, apoiada pelo divino Laocoonte, opôs-se com todas as forças à proposta de introduzir na cidade o cavalo de madeira que os Gregos tinham deixado na praia quando fingiram partir, dizendo que esse cavalo estava cheio de guerreiros armados. Mas Apolo enviou serpentes que devoraram Laocoonte e seus filhos, e ninguém fez caso da advertência de Cassandra. Atribui-se-lhe também um certo número de profecias acerca da sorte que esperava os troianos feitos prisioneiros após a queda da cidade e acerca do futuro destino da raça de Eneias.

Durante o saque de Tróia, refugiou-se no templo de Atena, onde foi perseguida por Ájax Locrense. Cassandra agarrou-se à estátua da deusa, mas Ájax arrancou-a de lá, fazendo oscilar a estátua na peanha, enquanto ela erguia os olhos ao céu. Perante tal sacrilégio, os Gregos prepararam-se para lapidar Ájax, mas ele escapa, refugiando-se no altar da deusa que acaba de ofender.

Na distribuição do saque, Cassandra foi dada a Agamémnon, que se deixou tomar de um amor violento por ela. Cassandra tinha permanecido virgem até então, embora não lhe tivessem faltado pretendentes, nomeadamente Otrioneu, o qual prometera a Príamo livrá-lo dos Gregos se, depois da vitória, lhe desse em recompensa a mão de sua filha. Mas Otrioneu foi morto por Idomeneu.

Cassandra teria dado a Agamémnon dois gémeos, Telédamo e Pélops. Ao regressar a Micenas, Agamémnon foi assassinado pela mulher, que ao mesmo tempo matou Cassandra, de quem tinha ciúmes. Em certas versões do assassínio de Agamémnon, a única causa da sua morte é o amor que ele tem por Cassandra.

In Pierre Grimal, “Dicionário da Mitologia Grega e Romana”, Lisboa: Difel, 1992, pp. 76-7

segunda-feira, 25 de abril de 2005

Aqui vai um link onde se pode consultar as personagens da Guerra de Troia.

http://www.filonet.pro.br/troia/personagens.htm

Boas leituras!


A figura de cassandra.
Posted by Hello

terça-feira, 12 de abril de 2005


A próxima leitura! Posted by Hello

Enquanto não chega o resumo da discussão de "Os Jardins da Memória", de Orhan Pamuk, discussão essa aliás bastante animada e produtiva, aqui ficam as propostas de livro para a próxima discussão:

Cristina:
"Cassandra", da Christa Wolf
Cassandra, filha do Rei de Tróia, tem o dom da profecia, mas carrega a maldição de nunca ninguém acreditar nela. Depois da queda de Tróia, numa corrente de memórias, associações, reflexões ela chega a compreender a sua própria vida e a guerra. Esta obra é uma recriação do mito clássico.

"Birdsong" / "O Canto dos Pássaros", de Sebastian Faulks
Aplaudida pela crítica e pelos leitores internacionais, este intensa obra romântica embora simultaneamente realista, atravessa três gerações e o inimaginável fosso entre a I Guerra Mundial e o presente. À medida que o jovem inglês Stephen Wraysford vive um tempestuoso romance com Isabelle Azaire, em França, e entre no obscuro e surreal mundo existente por baixo das trincheiras da Terra de Ninguém, Sebastian Faulks cria um mundo fictício que é tão trágico como O Adeus às Armas, de Hemingway e tão sensual como O Paciente Inglês.

Ana:
"Sputnik, Meu Amor", de Haruki Murakami
O narrador, um jovem professor primário, está apaixonado por Sumire, uma rebelde que conheceu na universidade. Um dia, num casamento, Sumire conhece Miu, uma mulher fascinante e misteriosa, de meia-idade, por quem se apaixona loucamente, acabando por se transformar na sua secretária. Partem para a Europa, numa busca que as empurra para uma estranha e mútua descoberta, e também para um desenlace assombrado. Ensaio sobre o desejo humano e a especulação sobre o destino, o livro de Haruki Murakami é um exuberante exemplo da arte de um dos mais importantes escritores do Japão contemporâneo.

Jennifer:
"Ravelstein", de Saul Bellow
(...) profundamente humano e sempre comovente, Ravelstein, o mais recente romance de Saul Bellow, é uma viagem através do amor e da memória. É um livro corajoso, sombrio e desoladamente divertido: uma elegia à amizade e às vidas bem (ou mal) vividas.

Ana Lúcia:
"A Misteriosa Chama da Rainha Loana", de Umberto Eco
Yambo, um abastado alfarrabista de Milão na casa dos sessenta, perdeu a memória após um AVC - lembra-se do enredo de cada livro que leu, de cada linha de poesia, mas não se lembra do próprio nome, não reconhece as próprias filhas ou qualquer momento da sua infância ou da sua família. Numa tentativa de recuperação de si próprio, Yambo aceita a sugestão da mulher de voltar à casa de campo da sua infância, onde descobre livros, álbuns de banda desenhada, revistas, discos de outros tempos, religiosamente guardados pelo avô já falecido, e começa uma viagem em busca do tempo perdido, povoado de imagens e personagens ora fictícios, ora reais, mas todos importantes para a redescoberta de si próprio.Assim, Yambo acaba por reviver a história da sua vida: de Mussolini à educação católica, de Josephine Baker a Flash Gordon ou Fred Astaire. (...) Nesta luta para recuperar a memória, Yambo só procura uma única e simples imagem: a imagem do seu primeiro amor.

"O Sétimo Herói", de João Aguiar
Jorge tem 18 anos, óculos, um estranho gosto pela leitura e uma grande timidez natural que se manifesta, sobretudo, perante as raparigas. Ele e dois amigos formam o Clube dos Poetas Semi-Vivos, cuja bebida sagrada é o ginger ale. Sem limão. Nada fazia prever que Jorge fosse empurrado para um mundo fantástico, onde ninguém usava óculos. E que nesse mundo tivesse de enfrentar enormes riscos, lutar com espada, com adaga, com lança, com o cérebro. Nada fazia prever que se transformasse num herói, coisa que jamais lhe passara pela cabeça. No entanto, isso aconteceu – e aconteceu porque o espreitavam três pares de olhinhos verdes...

Rita:
"Portugal, hoje: O Medo de Existir", de José Gil
"(...) Enfim, contrariamente ao que pode parecer, nenhum pressuposto catastrofista ou optimista quanto ao futuro do nosso país subjaz ao breve escrito agora publicado. Se não se falou "no que há de bom", em Portugal, foi apenas porque se deu relevo ao que impede a expressão das nossas forças enquanto indivíduos e enquanto colectividade. Seria mais interessante, sem dúvida, mas também muito mais difícil, descobrir as linhas de fuga que em certas zonas da cultura e do pensamento já se desenham para que tal aconteça. Procurou-se dizer o que é, sem estados de alma, mas com a intensidade que uma relação com este país supõe." (Das Notas Finais)

Novamente a escolha foi difícil, pois apetece ler todos, mas após um empate técnico entre "Cassandra" e "A Misteriosa Chama da Rainha Loana" acabou por vencer "Cassandra", de Christa Wolf, talvez a mais conceituada escritora alemã da actualidade.

Colocarei também em breve aqui no blog um texto do meu dicionário de mitologia greco-romana, com informações sobre o mito de Cassandra. Na medida em que, de acordo com o que já me foi possível averiguar, a narrativa da Christa Wolf não é linear, e também por se tratar de uma recriação do mito, será importante que tenhamos alguma noção sobre ele. Para breve, num blog perto de si!

domingo, 10 de abril de 2005


À Conversa com Paul Auster Posted by Hello

A propósito de um dos autores já lidos no clube de leitura, aqui fica uma nota sobre a programação deste mês da Culturgest:

À Conversa com Paul Auster

Paul Auster – cujo romance mais recente, A Noite do Oráculo, foi há pouco publicado entre nós – vem a Lisboa por ocasião da saída, em nova tradução, do seu romance (de 1990) A Música do Acaso. É uma oportunidade única para ouvir falar de si e dos seus livros, de o escutar em algumas leituras, de decifrar talvez o mistério desse caderno azul de fabrico português que o escritor Sidney Orr (protagonista de A Noite do Oráculo) compra ao chinês M.R. Chang na papelaria “Paper Palace” de Nova Iorque... Um encontro a não perder, com um dos maiores romancistas contemporâneos.

Conversas
29 de Abril
21h30
Sala 2
Entrada Gratuita
Levantamento de senha de acesso, 30 minutos antes do início da sessão, no limite dos lugares disponíveis
Uma colaboração Edições ASA / Culturgest

quinta-feira, 7 de abril de 2005


Isto é uma reprodução de um quadro que vi na Manchester Art Gallery: "Les Girls", de James Fitton. Imaginei as nossas reuniões de Chá de Letras de aqui a cinquenta anos! Posted by Hello

sexta-feira, 1 de abril de 2005


Voltei. O País de Gales fez-me lembrar o "Shire", a terra dos Hobbits. Lindo! Posted by Hello

sexta-feira, 4 de março de 2005


MAR ADENTRO Imperdível Bjs Ana Posted by Hello

Sören Kierkegaard (1813-1855) foi o primeiro filósofo a colocar a existência no centro da reflexão filosófica. Defendia que a verdadeira dimensão do ser humano é a realidade concreta, particular, singular e única:a sua própria existência. Esta é caracterizada pela liberdade, pela escolha, pela alternativa e pela paixão, pela vivência intensa e apaixonada do instante.
por achar que era merecida uma notinha sobre a figura....

Boas leituras,

Ana

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

Isto de andar mergulhada em utopias faz com que de vez em quanto se encontrem ideias muito interessantes:

"Se pudesse desejar algo, não desejaria riqueza nem poder, mas a paixão da possibilidade; desejaria um olho, eternamente jovem, eternamente ardente, que vê a possibilidade em todo o lado. O prazer desaponta, a possibilidade não."

Soren Kirkegaard


Vi há uns dias um filme lindíssimo. Sobre bichos, pessoas, emoções, laços familiares. Há uma universalidade nas nossas naturezas humanas e não-humanas que não cessa de me fascinar. Recomendo vivamente! Posted by Hello

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2005

By the way... A recente mudança de cor do blog de laranja para rosa foi anterior às eleições e completamente inconsciente (quanto muito do domínio do sub-consciente). Mas que está mai lindo, está! :-)


Sorry... Não resisti! ihihihihi Posted by Hello

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005


Orhan Pamuk Posted by Hello

PORTRAIT OF A WRITER

ORHAN PAMUK

Essay by Murat Belge

"... I end up recalling some other story in which the only way to be oneself is by becoming another or by losing one's way in another's tales; and the tales I want to put together in the black book remind me of a third or forth tale just like our love stories and memory gardens that open into one another ..."

"After all, nothing can be as astounding as life. Except for writing. Except for writing. Yes, of course, except for writing, the sole consolation."

Orhan Pamuk, The Black Book

What distinguishes Orhan Pamuk from most other Turkish writers is that for him the activity of writing is a mode of existence. By this I do not mean to say that Orhan Pamuk is more committed to the vocation than others. It is not so much a matter of the degree of commitment, but rather the form of it -his way of defining, limiting and specifying himself as "a writer", first and foremost. For most writers writing is self-expression, a passion usually, a gesture to cope with life and reality and an effort to produce meaning. For Orhan Pamuk these and other motivations may also be relevant, yet for him writing is a job, a career. His relationship to writing is cool, cerebral, and impassionate. It is an objective predicament that becomes identical with, and directs personal life, preferences, choices, etc.
His career as a writer does not limit his interests in various walks of life but delimits or structures his way of involvement in them. He is Orhan Pamuk, the writer, the novelist and not simply Orhan Pamuk, the individual, when he deals with, or ponders on a historical, political, social, aesthetic or merely existential question.
The publication of Cevdet Bey and His Sons in 1982 marks the beginning of his career. This was an almost naturalist novel, a dry and detailed (sometimes to the point of getting dull) family saga in the good old realist tradition. It was followed by The Silent House in 1983 where Orhan Pamuk had shifted to the "point of view" technique. We had to make up our own picture of what was happening through the internal monologues of a number of characters whose psycho-sociological formations were carefully studied by the author. The White Castle (1985) was erected on terrain already highly "post-modernized", but here the writer was re-constructing the ways of thinking of people who lived in a past age. The Black Book (1990) and New Life (1994) are clearly in the post-modern tradition of novel-writing. They are, in the words of Frederic Jameson, "national political allegories", in the sense that they present a general and historical vision of the society to which Orhan Pamuk belongs; but in form and technique they possess the entire arsenal of the post-modern novel born in the West.
So, the avatars through which the Orhan Pamuk Novel has progressed form a whole that looks like "A Condensed History of the Development of the Novel Form". Being the man of literature par excellence, his biography as a novelist is shaped in line with the history of the novel in general, his overall career, as well as his individual works, makes references to the world of literature.
Orhan Pamuk has been an innovator in the context of the Turkish novel in many ways, but I would like to dwell on one -very basic- trait of his work. He has introduced what I can call an architectural principle into Turkish fiction. His novels resemble meticulously constructed edifices where the elements are all functionally interdependent. They support and reflect one another, comment on and modify each other in an impeccable order. Nothing sags, no single piece of stone is laid haphazardly or without structural purpose. The overall plan of the book provides an explanation for every component.
Whereas for most writers a novel begins to grow and to take life during the process of writing, this process for Orhan Pamuk is merely the stage execution of the already highly perfected design. Rather than trying to create the illusion that art is life, he prefers to emphasize the novel's mode of existence -and its insertion into life- as an artifact, a product of the human mind, a response of the human intelligence, seeking meaning in order, to the challenge of life with its neutral complexity, infinity and chaos.

domingo, 13 de fevereiro de 2005


O grande vencedor e a nossa próxima leitura é "Os Jardins da Memória", de Orhan Pamuk Posted by Hello

Desta vez, a escolha do próximo livro foi bastante difícil, pela qualidade das sugestões que foram feitas:


- “Ana Karenine”, de Leo Tolstoi
- “Os linhos da avó”, de Rosa Lobato Faria
- “O amante do vulcão”, de Susan Sontag
- “Inês de Castro”, de uma autora espanhola
- “Jerusalém”, de Gonçalo m. Tavares
- “Chovem cabelos na fotografia”, de Antonieta Preto
- “As lições dos mestres”, de George Steiner
- “Alegria breve”, de Vergílio Ferreira
- “O vermelho e o negro”, de Stendhal
- “Os jardins da memória”, de Orhan Pamuk
- “Amigos até ao fim”, de John le Carré

Discussão de "Eu hei-de amar uma pedra", de António Lobo Antunes

Como já seria de esperar, o livro não foi recebido com agrado por todas as leitoras. Algumas optaram mesmo por desistir da sua leitura por manifesta falta de entusiasmo. A Ana quis fazer uma declaração, logo no início da reunião, explicando os motivos que a levaram a abandonar a leitura. Disse então, que até começou por aderir ao estilo que a foi, a pouco e pouco, começando a maçar. A dada altura sentiu algum desconforto por, de certa forma, se sentir gozada pelo autor. A Guida, em tom de brincadeira, disse que há muito não conseguia dormir tão bem, e que as duas paginazinhas diárias antes de deitar lhe asseguravam umas descansadas nove horas de sono. Na página 180 teve uma revelação e finalmente percebeu o enredo da obra. A partir daí conseguiu passar para as quatro páginas!

A Rita gostou muito do livro, e achou que se trata da bonita história de uma mulher que vive ao longo de quase toda a sua vida uma paixão não muito sofrida, serena, sempre à distância, mas fazendo parte da vida do seu amor, nos encontros às Quartas-feiras na hospedaria da Graça, nos passeios a Sintra ao Domingo, e mesmo nas férias de Verão em Tavira. Sofre quando não pode acompanhá-lo no funeral, sendo a amante de um homem casado. Segundo a Rita, esta mulher é, ela própria a pedra de que fala o título. É uma mulher que sofreu uma experiência traumática na adolescência – foi violada – e adquiriu uma frieza e uma impermeabilidade muito grandes. É de todos os narradores da obra aquela de quem temos menor acesso aos pensamentos e emoções. É uma espécie de sombra. A esta ideia de que esta personagem seria a “pedra” eu retorqui que, mais do que isso, e pela leitura do poema popular de onde a frase do título saiu -Eu hei-de amar uma pedra/deixar o teu coração/uma pedra sempre é mais firme/tu és falsa e sem razão (na íntegra mais abaixo) – o título referia-se à incapacidade das personagens para amar e serem amadas. Refere-se à falsidade e frieza da maior parte dos corações que remete as personagens para uma solidão quase absoluta, entregues às suas obsessões (as gaivotas do Beato, as fotografias do sr. Querubim, os antúrios, as arvéolas, o chapéu com cerejas, o mar, etc. etc.). A Isabel também frisou a incapacidade das personagens em dar-se. Concluímos que a relação mais perfeita retratada nesta obra é aquela estranha relação de um homem e uma mulher que se encontram durante cinquenta e tal anos, uma tarde por semana, numa sórdida hospedaria da Graça, alugada à hora a prostitutas e prostitutos e seus clientes. É uma relação que também tem muito de rotineira (as Quartas na Graça, os passeios a Sintra, Agosto passado em Tavira, dois toldos acima), mas apesar disso há uma constância e uma harmonia que não vemos nas outras relações. A Ana Lúcia sublinhou o que essa relação tinha de estável, mas também o seu carácter de aventura, pelo facto de ser ilícita. Estivemos a tentar descortinar até que ponto seria uma relação com uma componente carnal, ou meramente platónica. A Rosária referiu a passagem em que se diz que passavam as tardes sentados ou deitados lado a lado na cama da hospedaria e em que só esporadicamente se tocaram, o toque de uma mão sobre outra, ou quando ela o punha ao seu colo, como uma criança. A Paula disse que tinha ouvido também o Lobo Antunes falar sobre esta história em entrevistas e que se tratava de um acto de abnegação, em que nunca tinha existido uma entrega física.

A São, a nossa convidada desta sessão, assistiu a uma conferência do António Lobo Antunes em que o autor refere esta história, verídica, de uma paciente sua e dizia na altura que um dia haveria de contá-la. Falámos um pouco sobre o próprio autor e a sua personalidade difícil. A Jennifer ficou com uma opinião negativa do seu carácter, pelas entrevistas que leu e viu na televisão. A São discordou, considerando-o um ser humano excepcional, apenas uma pessoa tímida. A Rita também discordou e remeteu para uma entrevista que foi publicada como livro e que ela tem (falhou-me a referência bibliográfica). A Jennifer também admitiu que nas crónicas que Lobo Antunes publica na Visão parece ser uma pessoa genuinamente tocada pela dor dos outros. A Rita referiu ainda que, pela leitura que fez dessas entrevistas e da fotobiografia do autor, lhe parece que muitas das situações narradas no livro lhe parecem auto-biográficas, como, por exemplo, a relação que o protagonista estabelece com as filhas, o facto de quase todas as personagens cultivarem a solidão. Eu referi ainda a personagem do médico psicanalista, que poderá ter funcionado como um alter-ego do autor. A Ana Cristina, ainda no que diz respeito à personalidade do autor, contou um episódio engraçado. Quando perguntaram ao pai do Lobo Antunes o que achava de irem publicar uma fotobiografia do filho espantou-se muito e disse: “Mas porquê? A vida dele não tem interesse nenhum!”. Outra possível marca autobiográfica na obra é o facto do personagem principal ser uma pessoa muito marcada pela guerra em África, tal como Lobo Antunes que a refere em quase todas as suas obras.
A Rita também mencionou que, de todas as obras de Lobo Antunes que já leu, esta é a primeira em que aparece uma referência ao próprio acto da escrita. Eu lembrei uma passagem em que aparece no texto que um determinado pormenor foi inventado pelo António Lobo Antunes, na tentativa de melhorar o romance. Na última narrativa refere também a dificuldade em dar a obra por terminada. E a certa altura atribui a autoria do enredo à filha da madrinha da mãe do pimpolho, enquanto intermediária entre o autor e todas as outras personagens. Eu lembrei ainda uma passagem em que “explica” a estrutura narrativa do livro: uma história de amor, inventada por esta personagem, e colocada na boca de cada uma das outras personagens que se relacionaram com os amantes.

Tivemos algumas dúvidas quanto ao destino de algumas personagens, nomeadamente se a Raquel se teria suicidado com comprimidos, ou se a senhora amante do pimpolho se teria afogado. A propósito destas dificuldades na interpretação do texto, a Ana “queixou-se” que essas dificuldades, as coisas deixadas em aberto, as imprecisões a desmotivaram na leitura, ao que a Rita lhe respondeu com graça que, como disse o Umberto Eco, a obra era aberta. A Rosária também se manifestou algo incomodada com todas as coisas supérfluas que enchem o texto, o ruído criado por aquelas repetições de frases, palavras. Eu respondi-lhe que isso era o universo das obsessões de cada uma das personagens a manifestar-se.
A Ana Lúcia também teve uma saída engraçada. Disse que era curioso que estivéssemos a ler este livro numa altura em que surgem tantas entrevistas com a pintora Paula Rego, e que estava perfeitamente a ver a Paula Rego a pintar algumas cenas e personagens do livro.

No geral, e resumindo, tivemos três pessoas que aderiram completamente ao livro. A Rita achou lindo e muito comovente. A Ana Cristina adorou, e eu achei também muito tocante, e achei que o estilo no qual está escrito não é minimamente artificial mas que se coaduna perfeitamente com a história que está a ser contada e a forma como isso é feito. Marca a diferença e torna o livro verdadeiramente excepcional. O resto das leitoras foram mais cépticas, mas o livro acabou por nos fornecer matéria para uma discussão bastante animada e muito profícua.

Pois é… Desta vez ficámos sem uma “acta” decente da nossa última reunião… É que a discussão de “Oracle Night”, de Paul Auster, foi tão animada, tão caótica, que perdi completamente o fio à meada e fiquei com pouca vontade de escrever um resumo daquela verdadeira gritaria. E agora, passado tanto tempo, devo reconhecer que já nem seria capaz de reconstituir as discussões das quais fiz parte. Mas não queria deixar de referir que foi muito participada.

No geral, toda a gente aderiu muito bem à obra (porque é que me quer parecer que a opinião em relação a “Eu hei-de amar uma pedra” não será tão consensual?...), que constituiu uma leitura muito agradável. A Rita admitiu que se reconciliou um pouco com Auster, depois das suas últimas obras lhe terem parecido bastante inferiores às primeiras, sem o mesmo vigor. A Jennifer também gostou imenso, afirmando que é precisamente este tipo de livros, com enredos empolgantes, que mais aprecia ler. Eu, pela minha parte, devo dizer que gostei de ler o livro, tal como sempre me agrada a escrita do Paul Auster, mas houve algo nesta obra que não me satisfez. Nem queria acreditar quando virei a última página e me deparei com outra em branco. Ficou a faltar-me alguma coisa, como quando vamos a um desses restaurantes requintados de Nouvelle Cousine, saboreamos as iguarias que nos colocam à frente, muito bem apresentadas, mas no final da refeição… fica a apetecer-nos um ovinho estrelado para compor o estômago! Aquilo que me foi dado a provar no livro foi apreciado, mas venha de lá esse ovo, Sr. Auster!

E estou aqui a dar voltas à cabeça a tentar lembrar-me dos tópicos da discussão e já pouca coisa me ocorre (o mal é da minha pobre memória, não da reunião). Lembro-me que achámos muito curiosa aquela cave onde uma das personagens armazenava listas telefónicas. Pareceu-nos outro repositório de memória, como o “cemitério dos livros esquecidos” de Carlos Ruiz Záfon, em "A Sombra do Vento". Também me lembro que discutimos com algum pormenor “A noite do oráculo” enquanto meta-romance, ou seja um romance sobre romances, sobre o conceito de ficção, sobre a capacidade de criar mundos através da escrita, de ter o poder de conferir vida às personagens, ou deixá-las encerradas numa cave, trancadas, sem mais nenhuma alma viva, para além do leitor, a saber do seu paradeiro. E a capacidade da própria ficção gerar a realidade. O carácter mágico da criação literária, a palavra escrita a tornar verdadeiras as instâncias que cria, com aquele misterioso caderno azul, made in Portugal, e o poder que estabelece sobre quem nele escreve.

E pronto, perdoem-me as leitoras, mas já estou com a cabeça noutro romance, que vamos discutir de aqui a nada e em que, novamente, é levantado um pouco o véu dos mistérios da criação literária. E não é que amei mesmo a pedra?!


Ai, hei-de, hei-de! Oh, se hei-de! Posted by Hello


Eu também hei-de!! Posted by Hello

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005

Recebi um "comentário" à fotografia que coloquei no blog:


Tadinha......

Pobres olhinhos dela....

A mulher agarrada ao limoeiro....

Pimpolho....

Tavira, duas barracas.... distante

Pobre Pama (tem paciência com a tua patroa e as pombas brancas)

Submarino ao fundo (e os portas tambem)

Quando tem visitas ladra que se farta

Sentada a fazer crochet

Salta ao homem da pizza

"Cuidado com o cão"

Adeus....

Estou a descer do sétimo para o primeiro e a Beatriz nada me diz....

Ficarei pelo primeiro????

Espero que sim

Sexo F Idade 36 aparenta a idade

Mas as consultas não vão ficar pela quinta....

Beijocas

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2005

Aqui fica uma pequena nota sobre António Lobo Antunes proveniente da página do Instituto Português do Livro e das bibliotecas:

António Lobo Antunes
[Lisboa, 1942]

Romancista. Proveniente de uma família da grande burguesia portuguesa, licenciou-se em Medicina, com especialização em Psiquiatria. Exerceu a profissão no Hospital Miguel Bombarda em Lisboa, dedicando-se desde 1985 exclusivamente à escrita. A experiência em Angola na Guerra Colonial como tenente e médico do exército português durante vinte e sete meses (de 1971 a 1973) marcou fortemente os seus três primeiros romances.

Em termos temáticos, a sua obra prossegue com a tetralogia constituída por A explicação dos pássaros, Fado alexandrino, Auto dos Danados e As naus, onde o passado de Portugal, dos Descobrimentos ao processo revolucionário de Abril de 1974, é revisitado numa perspectiva de exposição disfórica dos tiques, taras e impotências de um povo que foram, ao longo dos séculos, ocultados em nome de uma versão heróica e epopeica da história. Segue-se a esta série a trilogia Tratado das paixões da alma, A ordem natural das coisas e A morte de Carlos Gardel - o chamado “ciclo de Benfica” -, revisitação de geografias da infância e adolescência do escritor (o bairro de Benfica, em Lisboa). Lugares nunca pacíficos, marcados pela perda e morte dos mitos e afectos do passado e pelos desencontros, incompatibilidades e divórcios nas relações do presente, numa espécie de deserto cercado de gente que se estende à volta das personagens.

António Lobo Antunes começou por utilizar o material psíquico que tinha marcado toda uma geração: os enredos das crises conjugais, as contradições revolucionárias de uma burguesia empolgada ou agredida pelo 25 de Abril, os traumas profundos da guerra colonial e o regresso dos colonizadores à pátria primitiva. Isto permitiu-lhe, de imediato, obter um reconhecimento junto dos leitores, que, no entanto, não foi suficientemente acompanhado pelo lado da crítica. As desconfianças em relação a um estranho que se intrometia no meio literário, a pouca adesão a um estilo excessivo que rapidamente foi classificado de "gongórico" e o próprio sucesso de público, contribuíram para alguns desentendimentos persistentes que se começaram a desvanecer com a repercussão internacional (em particular em França) que a obra de António Lobo Antunes obteve.

Ultrapassado este jogo de equívocos, António Lobo Antunes tornou-se um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. Pouco a pouco, a sua escrita concentrou-se, adensou-se, ganhou espessura e eficácia narrativa. De um modo impiedoso e obstinado, esta obra traça um dos quadros mais exaustivos e sociologicamente pertinentes do Portugal do século XX.
A sua obra prosseguiu numa contínua renovação linguística, tendo os seus últimos romances (Exortação aos Crocodilos, Não entres tão depressa nessa noite escura, Que farei quando tudo arde?, Boa tarde às coisas aqui em baixo), bem recebidos pela crítica, marcado definitivamente a ficção portuguesa dos últimos anos


Eu também tenho direito a amar uma pedra! Posted by Hello

Letra e música: popular: Alentejo
Intérprete: Vitorino, Janita Salomé
(rimance)
In: "Romances", 1991;

Eu hei-de amar uma pedra
deixar o teu coração
uma pedra sempre é mais firme
tu és falsa e sem razão

Tu és falsa e sem razão
eu hei-de amar uma pedra
eu hei-de amar uma pedra
deixar o teu coração

Quando eu estava de abalada
meu amor para te ver
armou-se uma trovada
mais tarde deu em chover

Mais tarde deu em chover
sem fazer frio nem nada
meu amor para te ver
quando eu estava de abalada


Se alguém tiver a música podia levar para a próxima reunião...
beijinhos

sábado, 15 de janeiro de 2005

Aqui fica um artigo que saiu no Mil Folhas de hoje sobre “A Noite do Oráculo”, de Paul Auster

Romance-ratoeira
Sábado, 15 de Janeiro de 2005
Luís Maio

Quando "A Noite do Oráculo" acaba, o narrador é um homem destroçado, a sua mulher foi espancada brutalmente, o seu melhor amigo morreu de embolia pulmonar e o filho deste foi assassinado. Não há final feliz, nenhuma espécie de catarse, o que seguramente contribui para o amargo de boca, indisfarçável quando se fecha o livro. "A Noite do Oráculo" é um romance complexo, artificioso e exemplarmente bem escrito, mas que se furta a cativar o leitor. Um mal-estar que está longe de se reduzir à ausência de redenção final.
Uma explicação para os desenvolvimentos trágicos que fecham o enredo é, porém, facultada na véspera do seu desenlace. Começa na invocação de um respeitado escritor francês que, nos anos 50, publicou um longo poema narrativo girando em torno da morte por afogamento de uma criança. Um par de meses após a edição, a filha desse mesmo escritor afogou-se no canal da Mancha e ele resolveu não voltar a escrever uma linha, ciente de que a sua tragédia ficcional desencadeara a tragédia real. Uma história que, articulada com o próprio drama do narrador, leva-o a concluir que "por vezes sabemos que determinadas coisas vão acontecer antes de realmente acontecerem, ainda que não saibamos que sabemos".
Esta crença especulativa na capacidade de prever o futuro, em particular no carácter premonitório da ficção, constitui uma segura novidade no mundo segundo Paul Auster. É uma defesa do pensamento mágico que entra em choque declarado com a noção de que o acaso e o acidente governam o mundo, tese familiar no seu corpo de obras, de resto, por diversas vezes recorrente neste novo romance. Mas a defesa do premonitório, por mais surpreendente que se revele, não é chave de coisa alguma, como não são os fatídicos acontecimentos que supostamente legitima. São apenas mais portas que se abrem no labirinto narrativo que Auster vai tecendo ao longo de "A Noite do Oráculo", outro "tour de force" do seu insólito pós-modernismo.
A paixão do inconclusivo
Sidney Orr, um romancista de 34 anos de idade, residente em Brooklyn, sai do hospital na sequência de uma doença quase fatal e está lentamente a recuperar a saúde física, ao mesmo tempo que procura reconquistar a inspiração literária. Assim arranca a narrativa, dentro de uma certa normalidade, uma vez que nunca sabemos de que doença padeceu o escritor, nem o que o leva agora a recapitular os acontecimentos relatados, ocorridos em 1982. Que se começam a desenhar na sequência da compra de um bloco de notas azul, que reflecte uma espécie de luz sobrenatural (é a primeira mistificação) capaz de subtrair o escritor à apatia, lançando-o num estado de febril criatividade.
A sua inspiração é um pequeno episódio relatado em "O Falcão de Malta", de Dashiell Hammett: um homem escapa por milagre a ser esmagado por uma viga, compreende que a luz do mundo é o acaso e abandona tudo para começar vida nova. O seu duplo, inventado por Orr, chama-se Nick Bowen e é um editor literário nova-iorquino que vive uma experiência traumática semelhante, que também o leva a desaparecer sem deixar rasto, partindo ao calhas para a cidade do Kansas. Leva apenas na bagagem um original da escritora Sylvia Maxwell chamado "A Noite do Oráculo", sobre um soldado inglês chamado Lemuel Flagg, que perde a visão na I Guerra Mundial, mas em compensação ganha o dom da profecia.
Os vários enredos correm em paralelo, até a história de Lemuel desaparecer inexplicavelmente do mapa e Bowen passar a ocupar o centro das atenções. Pelo menos até Orr o colocar numa situação semelhante a ser enterrado vivo e ficar num beco sem saída em termos narrativos. É aí que os acontecimentos na vida privada do narrador saltam para primeiro plano, ganhando em estranheza e dramatismo. Há uma relação, ou melhor, um feixe de conexões possíveis entre estes patamares narrativos, que por vezes se prendem com a capacidade premonitória do tempo, por vezes com acasos e coincidências, por vezes ainda com outros fantasmas e inquietações típicas de Auster, como o Holocausto e o medo de quartos fechados. Que, aliás, se entrelaçam noutras histórias secundárias - e se há personagens capazes de adivinhar o futuro, há também aquelas que conseguem mergulhar no passado, e mesmo a coincidência dos dois saltos temporais no argumento cinematográfico que Orr improvisa na base de "A Máquina do Tempo", de H. G. Wells.
O que importa, no entanto, é estas narrativas nunca serem conclusivas, sugerindo que o propósito de "A Noite do Oráculo" não é tanto contar esta ou aquela história, mas usá-las para pôr em questão as convenções de leitura. Trata-se para Auster de subverter essa codificação, sobretudo a crença afectiva que classicamente se associa ao romance, baralhando por completo as contas ao leitor. "A Noite do Oráculo" é a esse título o epítome do romance-armadilha, o menos chandleriano de Auster, porque não há "thriller", e o mais borgiano, porque tudo se resume a um arrasador quebra-cabeças. O leitor entra numa narrativa e a meio já mergulhou noutra, só para deslizar para uma terceira e assim sucessivamente. Para complicar ainda mais as coisas, cada relato é acompanhado por longas notas de rodapé, que muitas vezes incluem informação mais essencial que o próprio texto principal, que, quando se retoma, dificilmente se recorda onde ia. Mas também há pistas falsas com algum requinte de malvadez, como as fotocópias verdadeiras de listas telefónicas de Varsóvia de 1937/38, que se diria confirmarem a genealogia de personagens fictícias.
O leitor esforça-se para seguir o fio à meada, mas nesta vertigem de pistas equívocas acabará por se perder e este é o género de romance que se lê uma segunda vez... só para se ficar ainda mais baralhado. Frustrante, sem dúvida, mas nem por isso menos fascinante. Um "puzzle" sem solução, ainda mais retorcido se se pensar que "A Noite do Oráculo" está repleto de pormenores autobiográficos - o miúdo drogado que acaba baleado tem óbvia inspiração no filho de Auster, associado ao assassínio de Andre "Angel" Melendez - ou que há um indisfarçável ar de família com personagens do romance mais recente da sua esposa Siri Hustvedt. Ou ainda que "A Noite do Oráculo" repercute em muitos aspectos a sinfonia dissonante do "Livro da Memória", o segundo de "Invenção da Solidão", escrito um quarto de século atrás e agora reeditado entre nós.


"Portugal É Perfeito"
Sábado, 15 de Janeiro de 2005
L.M.

É graças à compra de um bloco de notas de azul, que o protagonista de "A Noite do Oráculo" recupera o ânimo e a capacidade de escrita. O caderno é de fabrico português e quando lhe pega pela primeira vez, numa pequena papelaria de Brooklyn, Orr sente uma súbita e incompreensível irrupção de bem-estar: "Os cadernos portugueses exerciam sobre mim um fascínio muito especial e eu sabia que não resistiria àquelas capas duras, àquelas linhas quadriculadas, àqueles cadernos costurados de papel robusto, sólido, imune a todo o tipo da borrões." O caderno português irá funcionar como um fetiche, ao mesmo tempo mágico e inquietante da sua escrita, ao ponto que acabará por destruí-lo. Por coincidência ou talvez não, as últimas linhas que escreve nesse caderno respeitam acontecimentos dramáticos, envolvendo a sua mulher, o seu melhor amigo e o filho dele, que ocorreram ou ele imagina que ocorreram numa pequena casa de férias, no litoral Norte de Portugal.
O nosso país tem o privilégio de uma terceira e mais demorada menção em "A Noite do Oráculo". Numa altura em que e a sua carreira literária caiu num impasse e está completamente nas lonas, Orr vê a luz ao fundo do túnel chegar de Portugal. Informado pela agente do interesse de editores portugueses em lançarem-no entre nós, o escritor declara que não tem objecções, antes pelo contrário. "Pessoa é um dos meus escritores preferidos. Deitaram abaixo Salazar e agora têm um governo decente. O terramoto de Lisboa inspirou Voltaire a escrever 'Candide'. E Portugal ajudou milhares de judeus a fugirem da Europa durante a guerra. É um país bestial. Eu nunca lá estive, é claro, mas, queira ou não queira, é lá que eu vivo agora. Não, Portugal é perfeito." (pág. 132)