sábado, 29 de outubro de 2005

Discussão de “O Sangue dos Outros”, de Simone de Beauvoir


Os últimos meses têm sido agrestes, em termos de trabalho. Mas ainda assi não queria que não ficasse testemunho da discussão, já distante no tempo, de “O Sangue dos Outros”, de Simone de Beauvoir. O que se segue é uma tentativa de tornar um pouco mais compostinhas as poucas notas que tirei durante a reunião.
No geral, as opiniões foram favoráveis embora algumas leitoras tenham manifestado alguma desilusão. Sentiram-se, de certa forma, defraudadas pois, tendo em conta que Simone de Beauvoir é essencialmente conhecida pelas suas ideias feministas, as leitoras acharam que as figuras femininas do romance não são representadas numa luz muito favorável. Particularmente exasperante é a figura de Hélène, que apesar de sofrer uma grande alteração ao longo da narrativa, tornando-se mais madura, não deixa de ser um tanto mimada, provocando alguma rejeição da personagem. Para essa rejeição em muito contribui também a sua ambiguidade moral, manifestada na colaboração com os nazis.

Ana Lúcia sublinhou a lucidez do livro em relação aos podres da natureza humana.

Está patente a impossibilidade de qualquer pessoa de ter a consciência tranquila. Enquanto houver sofrimento à nossa volta, e sempre o haverá, não poderemos ter a consciência tranquila porque nunca saberemos se poderíamos ter feito mais para mitigar esse sofrimento. Isto faz-me lembrar, agora à posteriori, uma cena do filme de Spielberg, “A Lista de Schindler”, em que, já quase no final, depois de ter salvo centenas de pessoas de um triste fim nos campos de concentração nazi, Schindler agarra o seu relógio de pulso e diz com frustração que se o tivesse vendido poderia ter salvo mais uma outra vida. Talvez sejam mesmo as pessoas que mais fazem pelos outros as que mais consciência têm do que fica por fazer…

Atitude de submissão.
Quando ele é conquistado ela sente-se verdadeiramente mulher “A mulher não nasce mulher, torna-se mulher”
Livro de época, já não se escreve assim.

Somos responsáveis pelos outros.
Fundamento do princípio de tolerância do século XX.
Ideia da culpa – grau de responsabilidade
Noção do Cristianismo


Lembrámos a figura de Álvaro Cunhal e as analogias com o protagonista– a vida, a luta, a liberdade, ambos provenientes de família burguesa.

Foram referidos ainda alguns pormenores biográficos de Simone e Sartre, como, por exemplo, o seu hábito nas cartas que trocavam entre si de dizer mal das amantes que partilhavam. Simone foi acusada de corrupção de menores pela mãe de uma dessas pobres raparigas o que causou a sua expulsão do ensino. Descreviam os seus amantes como “pessoazinhas fracas” demonstrando uma grande arrogância intelectual e falta de auto-censura.


Referimos uma curiosidade: Hélène de Beauvoir, a irmã de Simone, viveu um ano e meio em Faro e foi professora na Aliance Française e no Liceu. Notabilizou-se também como pintora
Beauvoir terá escrito “O Sangue dos Outros” numa altura em que o fim da guerra ainda era incerto, mas através da personagem de Jean ela mostrou o seu apoio à resistência francesa.
O livro foi adaptado a fime em 1982 por Claude Chabrol, com Jodie Foster como Hélène e Michael Ontkean como Jean.

Pedimos às nossas leitoras professoras de Filosofia para nos darem uma noção breve do que é o existencialismo, por nos parecer fundamental para a compreensão da obra. A Ana fê-lo de forma bastante organizada e sucinta. Na altura estive tão interessada a ouvir que não tomei notas decentes, pelo que serei incapaz de reproduzir. Fica o obrigada pela intervenção. Aqui ficam alguns dos tópicos que a Ana focou:
- Grande questão filosófica – qual o sentido da vida?
- Prende-se com a consciência do tempo, da finitude.
- Heidegger – homem como ser para a morte. A morte é tão natural como a vida
- Kirkegaard – existência de situações limite, dor, angústia
Procura sentido nas experiências de mais ser (alegria e amor) e menos ser (limite).
- À pergunta “existe sentido para a vida?” alguns respondem de forma positiva outros de forma negativa.
- Para Camus não existe sentido para a vida. Remete para o mito de Sísifo (cf. “O Estrangeiro” e “A Queda”). A vida é um absurdo a comédia de um ser humano à busca de um sentido – o equilíbrio emocional que depende do sentido e a própria vida não tem sentido. O mais rápido e mais cobarde é desistirmos. Sísifo portou-se mal e foi condenado a empurrar um pedregulho por um monte acima. Camus compara a vida a esse vazio. O que deve Sísifo fazer? Suicidar-se? Essa é a solução mais fácil. Perante algo que sabe como vai terminar assume a tarefa de executar a acção absurda e de cabeça erguida.
- Há os que encontram sentido na transcendência – existencialistas cristãos.
- Para Sartre é o homem que constrói o sentido da vida – ideais ecológicos, justiça social, etc.

A única volta a dar – viver plenamente o absurdo.

O Jean não vive bem com o peso da decisão. Vive a liberdade como uma condenação
O do capítulo V termina com uma passagem lindíssima, que vale a pena recordar:
“Estavas nos meus braços, e eu tinha o coração pesado por causa daqueles frouxos rumores de festa, e porque te mentia. Esmagado por essas coisas que existiam apesar de mim e das quais apenas a minha angústia me separava. Não há mais nada. Nesta cama, mais ninguém; perante mim, um abismo de nada. E a angústia explode, sozinha no vazio, para além de todas as coisas desvanecidas. Estou sozinho. Eu sou esta angústia que existe por si só, apesar de mim; confundo-me com esta existência cega. Apesar de mim, e contudo não jorrando senão de mim. Recuso-me a existir: existo. Decido existir: existo. Recuso. Decido. Existo. Haverá uma alvorada.”

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