terça-feira, 28 de junho de 2005

Tal como tinha prometido no texto da discussão sobre Cassandra, pedi à Ana o tal texto de Fernando Savater em que este, a propósito do comportamento das térmitas e de Heitor durante o cerco de Tróia, explica a diferença entre fazer e agir. É longo mas bastante interessante:


FAZER OU AGIR?

Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste falar das térmitas, essas formigas-brancas que em África constroem formigueiros impressionantes, com vários metros de altura e duros como pedra. Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não ter a couraça de quitina que protege outros insectos, o formigueiro serve-lhes de carapaça colectiva contra certas formigas inimigas, mais bem armadas do que elas. Mas por vezes um dos formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um elefante (os elefantes, que havemos nós de fazer, gostam de coçar os flancos nas termiteiras). A seguir, as térmicas-operário começam a trabalhar para reconstruir a fortaleza afectada, e fazem-no com toda a pressa. Entretanto, já as grandes formigas inimigas se lançam ao assalto. As térmitas-soldado saem em defesa da sua tribo e tentam deter as inimigas. Como nem no tamanho nem no armamento podem competir com elas, penduram-se nas assaltantes tentando travar o mais possível o seu avanço, enquanto ferozes mandíbulas invasoras as vão despedaçando. As operárias trabalham com toda a velocidade e esforçam-se por fechar de novo a termiteira derrubada... mas fecham-na deixando de fora as pobres e heróicas térmitas-soldado, que sacrificam as suas vidas pela segurança das restantes formigas. Não merecerão estas formigas-soldado pelo menos uma medalha? Não será justo dizer que são valentes?

Mudo agora de cenário, mas não de assunto. Na llíada, Homero conta a história de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, que espera a pé firme fora das muralhas da sua cidade Aquiles, o enfurecido campeão dos Aqueus, embora sabendo que Aquiles é mais forte do que ele e que vai provavelmente matá-lo. Fá-lo para cumprir o seu dever, que consiste em defender a família e os concidadãos do terrível assaltante. Ninguém tem dúvidas: Heitor é um herói, um homem valente como deve ser. Mas será Heitor heróico e valente da mesma maneira que as térmitas-soldado, cuja gesta milhões de vezes repetida nenhum Homem se deu ao trabalho de contar? Não faz Heitor, afinal de contas, a mesma coisa que qualquer uma das térmicas anónimas? Porque nos parece o seu valor mais autêntico e mais difícil do que o dos insectos? Qual é a diferença entre um e outro caso?

Muito simplesmente, a diferença assenta no facto de as térmitas-soldado lutarem e morrerem porque têm que o fazer, sem que possam evitá-lo (como a aranha come a mosca). Heitor, pelo seu lado, sai para enfrentar Aquiles porque quer. As térmitas-soldado não podem desertar, nem revoltar-se, nem fazer cera para que outras vão em seu lugar: estão programadas necessariamente pela Natureza para cumprirem a sua heróica missão. O caso de Heitor é distinto. Poderia dizer que está doente ou que não tem vontade de se bater com alguém mais forte do que ele. Talvez os seus concidadãos lhe chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que outro plano via ele para deter Aquiles, mas é indubitável que Heitor tem a possibilidade de se recusar a ser herói. Por muita pressão que os restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se supõe que deve fazer: não está programado para ser herói, nem o está seja que homem for. Daí que o seu gesto tenha mérito e que Homem nos conte a sua história com uma emoção épica. Ao contrário das cérmitas, dizemos que Heitor é livre e por isso admiramos a sua coragem.

Fernando Savater, Ética para um Jovem. Ed. Presença. pp. 21 e 22.

domingo, 26 de junho de 2005


A nossa leitura deste mês! Posted by Hello

Para breve, muito breve, num blogue perto de si, o resumo da discussão de "O Sangue dos Outros".

Entretanto, aqui fica a lista dos livros sugeridos hoje para a leitura deste mês:

- "Ravelstein", de Saul Bellow, já repetente.

- "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", pela terceira vez...

- "Sábado", de Ian McEwan

- "The Line of Beauty", de Alan Hollinghurst

- "A festa das rosas", de Indu Sundaresan

- "Os bons augúrios", de Neil Gaiman e Teri Pratchet

- "Rafael", de Manuel Alegre, esse clássico, sempre proposto (calma, Manuel, chegará a tua vez...)

A votação foi disputada mas decidida logo à primeira, tendo vencido "A misteriosa Chama da Rainha Loana", de Umberto Eco! É um senhor calhamaço, por isso mãos à obra!!


Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre Posted by Hello


Simone de Beauvoir Posted by Hello

As sugestões de leitura surgidas na reunião em que se discutiu a “Cassandra” foram:


- “Rafael”, de Manuel Alegre – um clássico entre as sugestões da Ana Lúcia!

- “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco

- “A Bíblia envenenada”, de Barbara Kingsolver

- “Ravelstein”, de Saul Bellow

- “A noite escura mais eu” ou “Estrutura da bola de sabão”, de Lígia Fagundes Telles

- “Intimidades” uma antologia de contos de escritoras portuguesas e brasileiras

- “O sangue dos outros”, de Simone de Beauvoir

- “O teu rosto amanhã” ou “Febre e lança”, de Javier Marias

- “Longe de Manaus”, de Francisco José Viegas

- “O Náufrago”, de Thomas Bernhard

- “Amigos até ao fim”, de John Le Carré


A votação foi bastante renhida, com Saul Bellow, Thomas Bernhard, John Le Carrée e Simone de Beauvoir a empatarem a uma primeira votação mas acabou por vencer “O Sangue dos Outros” de Simone de Beauvoir!

E continuo para Bingo dando início à segunda tarefa árdua da tarde, que é deixar um testemunho da passagem de Cassandra, de Christa Wolf, pelo "Chá de Letras".

Ai, pobre de mim, devo admitir que já pouco me lembro da discussão de Cassandra… Ao contrário de Os Jardins da Memória, que talvez porque não tenha reunido consensos deu origem àquela que foi talvez a discussão mais animada do clube de leitura, a Cassandra não deu azo a grande discussão. Talvez porque os temas que levanta com mais premência – a questão da importância de dar voz à mulher e de como as visões femininas do mundo podem contribuir para a construção de uma sociedade melhor – são consensuais entre as leitoras do Chá de Letras.

Como, de facto, já não me lembro muito bem do que foi discutido na reunião, vou optar por transcrever aqui a ficha de leitura que elaborei à medida que fui lendo o livro (como costumo fazer com os livros que posso ter necessidade de citar na minha tese).

As obras em que se inspirou Christa Wolf para compor Cassandra:

Ilíada, de Homero
As Troianas, de Eurípides
Troilus and Cressida, de Shakespeare, 1599
La Guerre de Troie n'aura pas lieu, de Giraudoux, 1935
Griechische Mythologie, de Robert von Ranke-Graves

Os temas mais importantes:

I - Matriarcado versus Patriarcado

As principais características do Patriarcado segundo Wolf:
1 - Posse
2 - Hierarquia
3 - Cultura da concorrência, esforço, eficiência
4 - Gigantismo - a "mega-máquina" das estruturas, a burocracia.
5 - Domínio - exploração de outras culturas, "colonização". A "colonização da mulher pelo homem".

Posição de Christa Wolf - crítica no que diz respeito às estruturas patriarcais. Céptica em relação a valores (herdados do iluminismo), como progresso, racionalidade, êxito e pensamento instrumental.
A questão que coloca: devem as mulheres desejar ser integradas no aparelho hierárquico patriarcal? Querem fazer o que fazem os homens?

As mulheres têm, segundo Wolf, uma maior sensibilidade, espontaneidade e uma escala de valores mais humana. Rejeita o feminismo mais militante ou a idealização de etapas da humanidade pré-racionais. Defende a emancipação de homens e mulheres, ou seja, o reconhecimento que têm necessidades diferentes e que não só o homem deve ser modelo para a humanidade, mas sim também a mulher. Vê novas formas de convivência, para além da luta e domínio.

Vê na Guerra de Tróia a passagem de um paradigma matriarcal para um paradigma patriarcal. Os Aqueus (Gregos) personificam já uma sociedade patriarcal completamente formada e levada ao extremo, nomeadamente no carácter agressivo, explorador e sádico (simbolizados pela figura do seu herói máximo, Aquiles, que é visto aqui em toda a sua crueldade: a morte de Troilo provoca-lhe um extremo prazer sexual; profana o cadáver de Pentesileia, exige o sacrifício de Polixena sobre o seu túmulo, etc. Os troianos não só capitulam perante os gregos como, ao longo da guerra, vão também perdendo os traços mais matriarcais da sua cultura (ex. a posição do rei Príamo e da rainha Hécuba no conselho: no início a rainha ocupa o trono e o rei senta-se placidamente num banco a seu lado. Vai perdendo essa posição dominadora até que, pura e simplesmente é banida do conselho a pretexto de que a guerra não é assunto de mulheres).

Esta mudança de paradigma na sociedade troiana é simbolizada pela figura e Eumelo (aliás uma personagem completamente inventada pela autora). O seu ascendente cada vez maior sobre o rei Príamo confere-lhe a si e ao seu corpo de guardas uma preponderância cada vez maior no funcionamento da cidadela e do palácio. A organização militar é acompanhada do crescimento da burocracia: funcionários, servidores do tempo, escribas, cantores e bardos (e as suas versões propagandísticas das três expedições de barco e do desenrolar dos acontecimentos bélicos ocupam um lugar cada vez mais importante).

Vestígios de uma sociedade matriarcal:
- A já mencionada posição que Hécuba ocupa no conselho
- A casa de Arisbe, onde viveu o meio-irmão de Cassandra, Ésaco
- O respeito pelas "três comadres ancestrais", as parteiras
- O secreto culto a Cibele - cena da êxtase colectiva

A mudança de paradigma é fundamental para a sobrevivência da espécie humana:
"Ich sage ihnen: Wenn ihr aufhörn könnt zu siegen, word diese eure Stadt bestehn" (p. 138)
"Digo-lhes: Se vocês conseguirem deixar de vencer, esta vossa cidade sobreviverá." (p. 146)

II - O mundo das grutas do Escamandro: uma Utopia real?

Modelo de uma esperança concreta. Não de uma visão do futuro, mas de uma oportunidade aproveitada, aqui e agora, no "meio da guerra".
A comunidade da margem do Escamandro procura viver no meio da morte e da destruição:
"Es gibt Zeitenlöcher. Dies ist so eines, hier und jetzt. Wir dürfen es nicht ungenutzt vergehen lassen." (p. 147) / "(…) há buracos no tempo. Estamos num deles, aqui e agora. E não o devemos desperdiçar." (p. 156)

"Zwischen Töten und Sterben ist ein Drittes: Leben"./

Faltam, nesta comunidade, os traços característicos do Patriarcado.
Os seus membros vivem fora do mundo civilizacional da cidadela, na natureza, simbolizada pela gruta como um mundo feminino.
É um mundo heterogéneo do ponto de vista social e étnico.
Vivem de forma despojada e sem noção de propriedade privada.
O trabalho individual sustenta as necessidades básicas do colectivo mas também serve como forma de aprendizagem.
Não existem hierarquias e domínios mas respeito por figuras de autoridade (Anquises e Arisbe).
Não há concorrência mas diferenças de opiniões.
Modelo de relacionamento entre homens e mulheres: Cassandra e Eneias: A reciprocidade: "Seine Hand an meiner Wange, meine Wange in seiner Hand" (A sua mão na minha face, a minha face na sua mão), "Aineias Kassandra. Kassandra Aineias"


Da discussão no clube de leitura, aquilo que me lembro melhor foi uma intervenção da Ana em que refere um exemplo dado por Fernando Savater, o filósofo espanhol contemporâneo que tem vindo a publicar bastante nos últimos anos e tem vindo a suscitar um interesse crescente, em “Ética para um jovem” no qual explica a distinção entre fazer e agir pela acção de Heitor ao enfrentar Aquiles. Vou pedir à Ana que me forneça o excerto do livro, que irei, em breve, colocar aqui para enriquecer este texto.

A Paula referiu a tese de doutoramento da Teresa Beleza, intitulada Complexo de Cassandra, e que originou a última alteração do código penal no que diz respeito à punição de crimes sexuais.

A propósito de Complexo de Cassandra, referi um complexo que vi uma vez descrito num texto de psiquiatria com o mesmo nome. Referia-se àquelas pessoas que pregam o fim do mundo e em quem geralmente nunca ninguém acredita.

A este propósito referimos ainda que talvez a maior aprendizagem que Cassandra tenha feito ao longo da acção tenha sido a do silêncio. Aprender o silêncio pode ser uma lição importante para salvaguardar os nossos interesses.

E pronto, desta vez é tudo, tenho pena de não ter tirado mais notas ao longo da discussão. Em todo o caso, e de uma forma geral, penso que o livro agradou a todas as leitoras, até porque se seguiu a dois livros de difícil “digestão” (“Eu hei-de amar uma pedra” e “Os Jardins da Memória”) e constituiu comparativamente uma leitura bastante leve. Os aspectos que mais agradaram foram as referências à mitologia grega, que constitui, de certa forma, um dos pilares da nossa civilização, e enquanto modelos/estereótipos da acção humana. As figuras mitológicas estiveram ainda na base de algumas das metanarrativas (como a Ilíada, a Odisseia ou a Eneida) que continuam a fascinar os seus leitores e cujas histórias são recontadas e perpetuadas na literatura desde então. Também a discussão da condição feminina constituiu uma mais valia da leitura desta obra. Além disso, algumas leitoras manifestaram o agrado pela oportunidade de “visitar” a obra de uma autora tão conceituada no seu país mas que tem pouca difusão em Portugal.

Com um atraso que até dói, aqui fica o resumo da discussão de Os Jardins da Memória (lembram-se? Aquele livro que lemos há tanto tempo?...) Enfim, mais vale tarde que nunca!


Mais uma vez, Os Jardins da Memória, de Orhan Pamuk, não reuniram consenso entre as leitoras do Chá de Letras. A maior parte teve dificuldade em acabar o livro, seja pela sua extensão, seja pela densidade do texto, que obrigava a uma leitura continuada e atenta.

A razão para a escolha deste romance como leitura do mês havia sido vontade de alargar o âmbito do clube a romances provenientes de outras culturas distintas. De facto, Pamuk, frequentemente comparado com Proust, é o romancista turco mais galardoado a nível nacional e internacional e que alegadamente fará a ponte entre o Ocidente e o Oriente, a modernidade e a tradição, o passado e o futuro. Neste aspecto, todas as leitoras foram unânimes em reconhecer que o faz de forma primorosa, e que a “mais valia” retirada da sua leitura terá sido um maior contacto com uma cultura tão diferente e tão complexa, e com a qual necessariamente teremos que criar laços, a concretizar-se a entrada da Turquia na União Europeia.

Foi, aliás, esse o tema, lateral à narrativa, que mais discussão suscitou durante a reunião. A questão mais premente foi a possibilidade de manutenção da cultura turca após a adesão à UE. A rigidez das normas comunitárias no que diz respeito, por exemplo, à uniformização dos produtos agrícolas, ou a normas de sanidade, colocará em risco instituições turcas tão importantes como, por exemplo, os mercados, onde reina um esfusiante caos e onde são típicas “as moscas na carne”, o exemplo que nos lembrámos para simbolizar essa incompatibilidade com as normas comunitárias de sanidade. Discutimos até que ponto é que será de perpetuar essas “moscas na carne” ou se certos hábitos culturais não serão mesmo de banir. Fazendo a transposição para o espaço português, foi também discutido o costume da matança do porco, enquanto evento familiar e festivo, e como foi proibido por uma questão sanitária. Estas questões levaram-nos a discutir uma atitude de relativização cultural que leva à desculpabilização de certas práticas como o ostracismo a que são votadas as mulheres, a obrigatoriedade de usar véu ou burka, práticas de amputação sexual, ou outro tipo de costumes que violam os direitos humanos, com o argumento que são parte de uma cultura ancestral a ser preservada a qualquer custo. Distanciámo-nos desta atitude, na medida em que, antes de quaisquer valores culturais específicos de cada povo deverão ser considerados os valores universais que têm a ver com os direitos de cada ser humano à sua dignidade e integridade física e mental.

Por outro lado, também foi lançado o argumento que, partindo do princípio que a União Europeia é um espaço de multiplicidade cultural, e que essa multiplicidade deve ser respeitada e defendida, então talvez seja benéfico que integre também um país islâmico e com uma vertente cultural marcadamente oriental, criando uma oportunidade para que a bipolaridade que vem sendo construída ao longo dos últimos anos, acentuada pelas duas Guerras do Golfo e pela catástrofe do 11 de Setembro, seja atenuada pelo exemplo de convivência num mesmo espaço político e económico que constitui a União Europeia.

No que diz respeito mais concretamente ao livro, as leitoras gostaram particularmente das crónicas escritas supostamente por Djélâl, como a crónica sobre os manequins, com a ideia subjacente da possibilidade da existência de uma sociedade subterrânea, secreta, que se estende ao longo da cidade; a crónica sobre a invasão o desaparecimento das águas do Bósforo, e de todos os dejectos da sociedade que passariam a estar visíveis no seu leito lamacento; ou ainda a crónica sobre a loja de Alladine, que tanto nos faz lembrar as lojecas que havia antigamente em Portugal nas terras mais pequenas onde se podia comprar de tudo e onde toda a espécie de artigos convivia numa alegre confusão.
As crónicas foram consideradas talvez a parte mais interessante do livro, embora, pela sua profusão (cada capítulo de narrativa intercala com uma crónica), tenham sido consideradas por algumas leitoras (incluo-me no grupo) como um entrave à fluidez da leitura. Talvez também pela variedade de temas que encerram as tenhamos considerado excessivas. Por mim, senti muitas vezes que o livro procura albergar demasiados pormenores, demasiados pontos de vista. Talvez tenha sido nesta perspectiva que a Rita afirmou que o livro tinha tudo para ser fascinante, mas que havia algo que falhava. Utilizando uma metáfora culinária, achei que parecia um prato confeccionado com tantos ingredientes, tantos condimentos, que se torna impossível apreciar adequadamente o sabor de cada alimento (logo eu, grande apreciadora da simplicidade e ascetismo da cozinha japonesa…). A meu ver, as crónicas dariam uma leitura semanal deliciosa, mas condensadas num só livro, tornam-se um tanto indigestas. Estejam perfeitamente à vontade para discordar!

Todas nos interrogámos sobre as possíveis interpretações para o facto de todas as personagens principais escreverem com esferográficas de tinta verde. Imediatamente nos veio à ideia a noção do verde enquanto símbolo de esperança. Pensámos, contudo, que poderia ter um qualquer outro significado na cultura turca. Procurei posteriormente em todos os meus dicionários de símbolos, e embora não tenha encontrado nada específico em relação À cultura turca, um dos dicionários referia a importância do verde para o islamismo:

(…) “Verde permaneceu, para os cristãos, a Esperança, virtude teologal. Mas o cristianismo desenvolveu-se em climas temperados, onde a água e a verdura se tornaram banais. O contrário se passa no caso do islamismo, cujas tradições se criaram como miragens, acima da imensidão hostil e ardente dos desertos. A bandeira do Islão é verde; e esta cor constitui para o muçulmano o emblema da Salvação, e o símbolo de todas as maiores riquezas, materiais e espirituais, de que a primeira é a família: verde era, dizem, o manto do enviado de Deus, sob o qual os seus descendentes directos – Fátima, a sua filha, Ali o seu genro, e os seus dois filhos Assan e Hussein – vinham refugiar-se na hora do perigo, razão pela qual lhes chamam ‘os quatro debaixo do manto’: os quatro, isto é, também, os quatro pilares sobre os quais Maomé construiu a sua igreja. (…)
No Islão, o verde é ainda a cor do conhecimento, bem como a do Profeta. Os santos, na sua morada paradisíaca, estão vestidos de verde.” In Chevalier, Jean e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa: Teorema, 1994, p. 683.

Á luz desta explicação, penso que poderemos interpretar essa obsessão com a escrita a verde como mais uma tentativa de manter viva a tradição.

Mais uma vez, deparámo-nos com um livro que se debruça sobre o acto da escrita, a criação literária. Tem sido uma constante nas nossas leituras. Pensamos que se trata, de certa forma, de uma tendência de moda, tal como há uns anos atrás, como dizia a Ana Lúcia com muita graça, eram constantes as referências à homosexualidade. Ainda assim, congratulámo-nos com mais uma perspectiva sobre o, ainda assim, misterioso acto da criação artística.

Apesar de não conhecermos o original, pareceu-nos justo atribuir algumas das incongruências linguísticas à tradução. Eu já havia lido duras críticas às traduções inglesas da obra, e não temos como saber se esta foi traduzida do turco ou de uma outra versão traduzida. Percebemos, por exemplo, que o título não foi minimamente respeitado. Com a ajuda de um pequeno guia da Turquia, percebemos que o título em turco seria “O Livro Negro”, como aliás foi chamado na versão em inglês (The Black Book). E, apesar de, antes de ter iniciado a leitura, considerar o título muito bonito e sugestivo, foi uma das coisas que me foi irritando à medida que avançava na leitura: surgia constantemente mencionada a expressão “jardins da memória” e senti que não havia necessidade de explicar o título de forma tão óbvia. Afinal parece que foi uma liberdade do tradutor, ou da editora.

Gostámos todas particularmente das epígrafes escolhidas para o início de cada capítulo e tomam um especial significado a partir do momento em que a epígrafe do primeiro capítulo é: “Não useis a epígrafe, porque mata o mistério da obra!” seguida de outra que diz: “Se assim deve perecer, só tens que matar o segredo e também o falso profeta que vende o segredo”. Pelo facto de usar e abusar delas, quererá talvez demonstrar que a obra sobrevive para lá do mistério, e para lá do seu autor.

Numa segunda fase da discussão do livro, fizemos uma ronda de opiniões que se revelou bastante profícua. Vou referir apenas algumas das opiniões (aquelas de que ainda me lembro…) A Ana afirmou que gostou particularmente de ver tratado o tema da identidade. Queixou-se de uma certa “overdose” de informação mas realçou a criatividade das crónicas.

A Jennifer considerou a sua experiência de leitura, de uma forma geral, bastante positiva, e destacou a perspectiva diferente da que estamos habituados de lidar com a questão Ocidente/Oriente. A questão é abordada sem a normal atitude paternalista que os ocidentais têm em relação a outras culturas que tendem a ver como folclore. A esse propósito referimos ainda que nos parecia de alguma forma estar inferido no discurso um certo complexo de inferioridade, o discurso do vencido – o Oriente – apesar de surgir aqui e ali a referência ao peso histórico do império otomomano.

A Isabel referiu a dificuldade em avançar na leitura pela estranheza dos nomes das personagens, para os quais não temos referente, e também a dificuldade em compreender algumas referências culturais.

A Ana Lúcia, a leitora que manifestou ter gostado mais deste livro, teve uma intervenção muito interessante em que, de uma forma sucinta fez uma apologia do livro como a voz de um povo e de uma cultura que costuma ser silenciada mas que teve um impacto tremendo na formação da nossa própria cultura. Segundo a Ana Lúcia, o livro constitui um mau presságio para a cultura turca, na medida em que aqueles que a defendem acabam por morrer. Em relação à densidade do livro, a Ana Lúcia vê-a com o reflexo da densidade do próprio país – onde cada “pedra” contém uma infinidade de informação. Relembrou ainda que as origens da filosofia estão naquele que é actualmente território turco, então uma colónia grega.

A Rosária admitiu que lhe custou a entrar na história e que talvez o livro lhe tivesse dito muito mais se já estivesse estado na Turquia, o que ajudaria a identificar muitos mais aspectos. Realçou a intensidade do livro o facto de ser muito visual. Agradou-lhe particularmente a noção de família, simbolizada por aquele prédio onde co-habitava a família descrita na obra e onde se desenrola grande parte da acção.

No geral, todas reconhecemos que ganhámos algo com a leitura deste livro, uma outra perspectiva sobre assuntos tão actuais como o choque civilizacional entre o Ocidente e o Oriente. A discussão foi, desta vez, particularmente animada.

segunda-feira, 13 de junho de 2005

Álvaro Cunhal (1913-2005)


desenho de Álvaro Cunhal. Para sempre entre nós. Posted by Hello

Eugénio de Andrade (1923-2005)

Estou contente, não devo nada à vida,
e a vida deve-me apenas
dez réis de mel coado.
Estamos quites, assim

o corpo já pode descansar: dia
após dia lavrou, semeou,
também colheu, e até
alguma coisa dissipou, o pobre,

pobríssimo animal,
agora de testículos aposentados.
Um dia destes vou-me estender
debaixo da figueira, aquela

que vi exasperada e só, há muitos anos:
pertenço à mesma raça.

Eugénio de Andrade (1923-2005)
in "Branco no Branco", 1984

Para sempre entre nós.