E continuo para Bingo dando início à segunda tarefa árdua da tarde, que é deixar um testemunho da passagem de Cassandra, de Christa Wolf, pelo "Chá de Letras".
Ai, pobre de mim, devo admitir que já pouco me lembro da discussão de Cassandra… Ao contrário de Os Jardins da Memória, que talvez porque não tenha reunido consensos deu origem àquela que foi talvez a discussão mais animada do clube de leitura, a Cassandra não deu azo a grande discussão. Talvez porque os temas que levanta com mais premência – a questão da importância de dar voz à mulher e de como as visões femininas do mundo podem contribuir para a construção de uma sociedade melhor – são consensuais entre as leitoras do Chá de Letras.
Como, de facto, já não me lembro muito bem do que foi discutido na reunião, vou optar por transcrever aqui a ficha de leitura que elaborei à medida que fui lendo o livro (como costumo fazer com os livros que posso ter necessidade de citar na minha tese).
As obras em que se inspirou Christa Wolf para compor Cassandra:
Ilíada, de Homero
As Troianas, de Eurípides
Troilus and Cressida, de Shakespeare, 1599
La Guerre de Troie n'aura pas lieu, de Giraudoux, 1935
Griechische Mythologie, de Robert von Ranke-Graves
Os temas mais importantes:
I - Matriarcado versus Patriarcado
As principais características do Patriarcado segundo Wolf:
1 - Posse
2 - Hierarquia
3 - Cultura da concorrência, esforço, eficiência
4 - Gigantismo - a "mega-máquina" das estruturas, a burocracia.
5 - Domínio - exploração de outras culturas, "colonização". A "colonização da mulher pelo homem".
Posição de Christa Wolf - crítica no que diz respeito às estruturas patriarcais. Céptica em relação a valores (herdados do iluminismo), como progresso, racionalidade, êxito e pensamento instrumental.
A questão que coloca: devem as mulheres desejar ser integradas no aparelho hierárquico patriarcal? Querem fazer o que fazem os homens?
As mulheres têm, segundo Wolf, uma maior sensibilidade, espontaneidade e uma escala de valores mais humana. Rejeita o feminismo mais militante ou a idealização de etapas da humanidade pré-racionais. Defende a emancipação de homens e mulheres, ou seja, o reconhecimento que têm necessidades diferentes e que não só o homem deve ser modelo para a humanidade, mas sim também a mulher. Vê novas formas de convivência, para além da luta e domínio.
Vê na Guerra de Tróia a passagem de um paradigma matriarcal para um paradigma patriarcal. Os Aqueus (Gregos) personificam já uma sociedade patriarcal completamente formada e levada ao extremo, nomeadamente no carácter agressivo, explorador e sádico (simbolizados pela figura do seu herói máximo, Aquiles, que é visto aqui em toda a sua crueldade: a morte de Troilo provoca-lhe um extremo prazer sexual; profana o cadáver de Pentesileia, exige o sacrifício de Polixena sobre o seu túmulo, etc. Os troianos não só capitulam perante os gregos como, ao longo da guerra, vão também perdendo os traços mais matriarcais da sua cultura (ex. a posição do rei Príamo e da rainha Hécuba no conselho: no início a rainha ocupa o trono e o rei senta-se placidamente num banco a seu lado. Vai perdendo essa posição dominadora até que, pura e simplesmente é banida do conselho a pretexto de que a guerra não é assunto de mulheres).
Esta mudança de paradigma na sociedade troiana é simbolizada pela figura e Eumelo (aliás uma personagem completamente inventada pela autora). O seu ascendente cada vez maior sobre o rei Príamo confere-lhe a si e ao seu corpo de guardas uma preponderância cada vez maior no funcionamento da cidadela e do palácio. A organização militar é acompanhada do crescimento da burocracia: funcionários, servidores do tempo, escribas, cantores e bardos (e as suas versões propagandísticas das três expedições de barco e do desenrolar dos acontecimentos bélicos ocupam um lugar cada vez mais importante).
Vestígios de uma sociedade matriarcal:
- A já mencionada posição que Hécuba ocupa no conselho
- A casa de Arisbe, onde viveu o meio-irmão de Cassandra, Ésaco
- O respeito pelas "três comadres ancestrais", as parteiras
- O secreto culto a Cibele - cena da êxtase colectiva
A mudança de paradigma é fundamental para a sobrevivência da espécie humana:
"Ich sage ihnen: Wenn ihr aufhörn könnt zu siegen, word diese eure Stadt bestehn" (p. 138)
"Digo-lhes: Se vocês conseguirem deixar de vencer, esta vossa cidade sobreviverá." (p. 146)
II - O mundo das grutas do Escamandro: uma Utopia real?
Modelo de uma esperança concreta. Não de uma visão do futuro, mas de uma oportunidade aproveitada, aqui e agora, no "meio da guerra".
A comunidade da margem do Escamandro procura viver no meio da morte e da destruição:
"Es gibt Zeitenlöcher. Dies ist so eines, hier und jetzt. Wir dürfen es nicht ungenutzt vergehen lassen." (p. 147) / "(…) há buracos no tempo. Estamos num deles, aqui e agora. E não o devemos desperdiçar." (p. 156)
"Zwischen Töten und Sterben ist ein Drittes: Leben"./
Faltam, nesta comunidade, os traços característicos do Patriarcado.
Os seus membros vivem fora do mundo civilizacional da cidadela, na natureza, simbolizada pela gruta como um mundo feminino.
É um mundo heterogéneo do ponto de vista social e étnico.
Vivem de forma despojada e sem noção de propriedade privada.
O trabalho individual sustenta as necessidades básicas do colectivo mas também serve como forma de aprendizagem.
Não existem hierarquias e domínios mas respeito por figuras de autoridade (Anquises e Arisbe).
Não há concorrência mas diferenças de opiniões.
Modelo de relacionamento entre homens e mulheres: Cassandra e Eneias: A reciprocidade: "Seine Hand an meiner Wange, meine Wange in seiner Hand" (A sua mão na minha face, a minha face na sua mão), "Aineias Kassandra. Kassandra Aineias"
Da discussão no clube de leitura, aquilo que me lembro melhor foi uma intervenção da Ana em que refere um exemplo dado por Fernando Savater, o filósofo espanhol contemporâneo que tem vindo a publicar bastante nos últimos anos e tem vindo a suscitar um interesse crescente, em “Ética para um jovem” no qual explica a distinção entre fazer e agir pela acção de Heitor ao enfrentar Aquiles. Vou pedir à Ana que me forneça o excerto do livro, que irei, em breve, colocar aqui para enriquecer este texto.
A Paula referiu a tese de doutoramento da Teresa Beleza, intitulada Complexo de Cassandra, e que originou a última alteração do código penal no que diz respeito à punição de crimes sexuais.
A propósito de Complexo de Cassandra, referi um complexo que vi uma vez descrito num texto de psiquiatria com o mesmo nome. Referia-se àquelas pessoas que pregam o fim do mundo e em quem geralmente nunca ninguém acredita.
A este propósito referimos ainda que talvez a maior aprendizagem que Cassandra tenha feito ao longo da acção tenha sido a do silêncio. Aprender o silêncio pode ser uma lição importante para salvaguardar os nossos interesses.
E pronto, desta vez é tudo, tenho pena de não ter tirado mais notas ao longo da discussão. Em todo o caso, e de uma forma geral, penso que o livro agradou a todas as leitoras, até porque se seguiu a dois livros de difícil “digestão” (“Eu hei-de amar uma pedra” e “Os Jardins da Memória”) e constituiu comparativamente uma leitura bastante leve. Os aspectos que mais agradaram foram as referências à mitologia grega, que constitui, de certa forma, um dos pilares da nossa civilização, e enquanto modelos/estereótipos da acção humana. As figuras mitológicas estiveram ainda na base de algumas das metanarrativas (como a Ilíada, a Odisseia ou a Eneida) que continuam a fascinar os seus leitores e cujas histórias são recontadas e perpetuadas na literatura desde então. Também a discussão da condição feminina constituiu uma mais valia da leitura desta obra. Além disso, algumas leitoras manifestaram o agrado pela oportunidade de “visitar” a obra de uma autora tão conceituada no seu país mas que tem pouca difusão em Portugal.
domingo, 26 de junho de 2005
etiquetas:
Christa Wolf
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