Com um atraso que até dói, aqui fica o resumo da discussão de Os Jardins da Memória (lembram-se? Aquele livro que lemos há tanto tempo?...) Enfim, mais vale tarde que nunca!
Mais uma vez, Os Jardins da Memória, de Orhan Pamuk, não reuniram consenso entre as leitoras do Chá de Letras. A maior parte teve dificuldade em acabar o livro, seja pela sua extensão, seja pela densidade do texto, que obrigava a uma leitura continuada e atenta.
A razão para a escolha deste romance como leitura do mês havia sido vontade de alargar o âmbito do clube a romances provenientes de outras culturas distintas. De facto, Pamuk, frequentemente comparado com Proust, é o romancista turco mais galardoado a nível nacional e internacional e que alegadamente fará a ponte entre o Ocidente e o Oriente, a modernidade e a tradição, o passado e o futuro. Neste aspecto, todas as leitoras foram unânimes em reconhecer que o faz de forma primorosa, e que a “mais valia” retirada da sua leitura terá sido um maior contacto com uma cultura tão diferente e tão complexa, e com a qual necessariamente teremos que criar laços, a concretizar-se a entrada da Turquia na União Europeia.
Foi, aliás, esse o tema, lateral à narrativa, que mais discussão suscitou durante a reunião. A questão mais premente foi a possibilidade de manutenção da cultura turca após a adesão à UE. A rigidez das normas comunitárias no que diz respeito, por exemplo, à uniformização dos produtos agrícolas, ou a normas de sanidade, colocará em risco instituições turcas tão importantes como, por exemplo, os mercados, onde reina um esfusiante caos e onde são típicas “as moscas na carne”, o exemplo que nos lembrámos para simbolizar essa incompatibilidade com as normas comunitárias de sanidade. Discutimos até que ponto é que será de perpetuar essas “moscas na carne” ou se certos hábitos culturais não serão mesmo de banir. Fazendo a transposição para o espaço português, foi também discutido o costume da matança do porco, enquanto evento familiar e festivo, e como foi proibido por uma questão sanitária. Estas questões levaram-nos a discutir uma atitude de relativização cultural que leva à desculpabilização de certas práticas como o ostracismo a que são votadas as mulheres, a obrigatoriedade de usar véu ou burka, práticas de amputação sexual, ou outro tipo de costumes que violam os direitos humanos, com o argumento que são parte de uma cultura ancestral a ser preservada a qualquer custo. Distanciámo-nos desta atitude, na medida em que, antes de quaisquer valores culturais específicos de cada povo deverão ser considerados os valores universais que têm a ver com os direitos de cada ser humano à sua dignidade e integridade física e mental.
Por outro lado, também foi lançado o argumento que, partindo do princípio que a União Europeia é um espaço de multiplicidade cultural, e que essa multiplicidade deve ser respeitada e defendida, então talvez seja benéfico que integre também um país islâmico e com uma vertente cultural marcadamente oriental, criando uma oportunidade para que a bipolaridade que vem sendo construída ao longo dos últimos anos, acentuada pelas duas Guerras do Golfo e pela catástrofe do 11 de Setembro, seja atenuada pelo exemplo de convivência num mesmo espaço político e económico que constitui a União Europeia.
No que diz respeito mais concretamente ao livro, as leitoras gostaram particularmente das crónicas escritas supostamente por Djélâl, como a crónica sobre os manequins, com a ideia subjacente da possibilidade da existência de uma sociedade subterrânea, secreta, que se estende ao longo da cidade; a crónica sobre a invasão o desaparecimento das águas do Bósforo, e de todos os dejectos da sociedade que passariam a estar visíveis no seu leito lamacento; ou ainda a crónica sobre a loja de Alladine, que tanto nos faz lembrar as lojecas que havia antigamente em Portugal nas terras mais pequenas onde se podia comprar de tudo e onde toda a espécie de artigos convivia numa alegre confusão.
As crónicas foram consideradas talvez a parte mais interessante do livro, embora, pela sua profusão (cada capítulo de narrativa intercala com uma crónica), tenham sido consideradas por algumas leitoras (incluo-me no grupo) como um entrave à fluidez da leitura. Talvez também pela variedade de temas que encerram as tenhamos considerado excessivas. Por mim, senti muitas vezes que o livro procura albergar demasiados pormenores, demasiados pontos de vista. Talvez tenha sido nesta perspectiva que a Rita afirmou que o livro tinha tudo para ser fascinante, mas que havia algo que falhava. Utilizando uma metáfora culinária, achei que parecia um prato confeccionado com tantos ingredientes, tantos condimentos, que se torna impossível apreciar adequadamente o sabor de cada alimento (logo eu, grande apreciadora da simplicidade e ascetismo da cozinha japonesa…). A meu ver, as crónicas dariam uma leitura semanal deliciosa, mas condensadas num só livro, tornam-se um tanto indigestas. Estejam perfeitamente à vontade para discordar!
Todas nos interrogámos sobre as possíveis interpretações para o facto de todas as personagens principais escreverem com esferográficas de tinta verde. Imediatamente nos veio à ideia a noção do verde enquanto símbolo de esperança. Pensámos, contudo, que poderia ter um qualquer outro significado na cultura turca. Procurei posteriormente em todos os meus dicionários de símbolos, e embora não tenha encontrado nada específico em relação À cultura turca, um dos dicionários referia a importância do verde para o islamismo:
(…) “Verde permaneceu, para os cristãos, a Esperança, virtude teologal. Mas o cristianismo desenvolveu-se em climas temperados, onde a água e a verdura se tornaram banais. O contrário se passa no caso do islamismo, cujas tradições se criaram como miragens, acima da imensidão hostil e ardente dos desertos. A bandeira do Islão é verde; e esta cor constitui para o muçulmano o emblema da Salvação, e o símbolo de todas as maiores riquezas, materiais e espirituais, de que a primeira é a família: verde era, dizem, o manto do enviado de Deus, sob o qual os seus descendentes directos – Fátima, a sua filha, Ali o seu genro, e os seus dois filhos Assan e Hussein – vinham refugiar-se na hora do perigo, razão pela qual lhes chamam ‘os quatro debaixo do manto’: os quatro, isto é, também, os quatro pilares sobre os quais Maomé construiu a sua igreja. (…)
No Islão, o verde é ainda a cor do conhecimento, bem como a do Profeta. Os santos, na sua morada paradisíaca, estão vestidos de verde.” In Chevalier, Jean e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa: Teorema, 1994, p. 683.
Á luz desta explicação, penso que poderemos interpretar essa obsessão com a escrita a verde como mais uma tentativa de manter viva a tradição.
Mais uma vez, deparámo-nos com um livro que se debruça sobre o acto da escrita, a criação literária. Tem sido uma constante nas nossas leituras. Pensamos que se trata, de certa forma, de uma tendência de moda, tal como há uns anos atrás, como dizia a Ana Lúcia com muita graça, eram constantes as referências à homosexualidade. Ainda assim, congratulámo-nos com mais uma perspectiva sobre o, ainda assim, misterioso acto da criação artística.
Apesar de não conhecermos o original, pareceu-nos justo atribuir algumas das incongruências linguísticas à tradução. Eu já havia lido duras críticas às traduções inglesas da obra, e não temos como saber se esta foi traduzida do turco ou de uma outra versão traduzida. Percebemos, por exemplo, que o título não foi minimamente respeitado. Com a ajuda de um pequeno guia da Turquia, percebemos que o título em turco seria “O Livro Negro”, como aliás foi chamado na versão em inglês (The Black Book). E, apesar de, antes de ter iniciado a leitura, considerar o título muito bonito e sugestivo, foi uma das coisas que me foi irritando à medida que avançava na leitura: surgia constantemente mencionada a expressão “jardins da memória” e senti que não havia necessidade de explicar o título de forma tão óbvia. Afinal parece que foi uma liberdade do tradutor, ou da editora.
Gostámos todas particularmente das epígrafes escolhidas para o início de cada capítulo e tomam um especial significado a partir do momento em que a epígrafe do primeiro capítulo é: “Não useis a epígrafe, porque mata o mistério da obra!” seguida de outra que diz: “Se assim deve perecer, só tens que matar o segredo e também o falso profeta que vende o segredo”. Pelo facto de usar e abusar delas, quererá talvez demonstrar que a obra sobrevive para lá do mistério, e para lá do seu autor.
Numa segunda fase da discussão do livro, fizemos uma ronda de opiniões que se revelou bastante profícua. Vou referir apenas algumas das opiniões (aquelas de que ainda me lembro…) A Ana afirmou que gostou particularmente de ver tratado o tema da identidade. Queixou-se de uma certa “overdose” de informação mas realçou a criatividade das crónicas.
A Jennifer considerou a sua experiência de leitura, de uma forma geral, bastante positiva, e destacou a perspectiva diferente da que estamos habituados de lidar com a questão Ocidente/Oriente. A questão é abordada sem a normal atitude paternalista que os ocidentais têm em relação a outras culturas que tendem a ver como folclore. A esse propósito referimos ainda que nos parecia de alguma forma estar inferido no discurso um certo complexo de inferioridade, o discurso do vencido – o Oriente – apesar de surgir aqui e ali a referência ao peso histórico do império otomomano.
A Isabel referiu a dificuldade em avançar na leitura pela estranheza dos nomes das personagens, para os quais não temos referente, e também a dificuldade em compreender algumas referências culturais.
A Ana Lúcia, a leitora que manifestou ter gostado mais deste livro, teve uma intervenção muito interessante em que, de uma forma sucinta fez uma apologia do livro como a voz de um povo e de uma cultura que costuma ser silenciada mas que teve um impacto tremendo na formação da nossa própria cultura. Segundo a Ana Lúcia, o livro constitui um mau presságio para a cultura turca, na medida em que aqueles que a defendem acabam por morrer. Em relação à densidade do livro, a Ana Lúcia vê-a com o reflexo da densidade do próprio país – onde cada “pedra” contém uma infinidade de informação. Relembrou ainda que as origens da filosofia estão naquele que é actualmente território turco, então uma colónia grega.
A Rosária admitiu que lhe custou a entrar na história e que talvez o livro lhe tivesse dito muito mais se já estivesse estado na Turquia, o que ajudaria a identificar muitos mais aspectos. Realçou a intensidade do livro o facto de ser muito visual. Agradou-lhe particularmente a noção de família, simbolizada por aquele prédio onde co-habitava a família descrita na obra e onde se desenrola grande parte da acção.
No geral, todas reconhecemos que ganhámos algo com a leitura deste livro, uma outra perspectiva sobre assuntos tão actuais como o choque civilizacional entre o Ocidente e o Oriente. A discussão foi, desta vez, particularmente animada.
domingo, 26 de junho de 2005
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Orhan Pamuk
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