quinta-feira, 25 de novembro de 2004

Já agora, para quem estiver interessado em vasculhar coisas sobre o autor e suas obras, aqui fica o endereço da página oficial do Paul Auster: www.paulauster.co.uk

A "pérola" do post anterior foi retirada de uma entrevista do autor ao "The Brooklyn Rail", que consta do dito site.

Apreciem só uma letra escrita pelo Paul Auster sobre o nosso "amigo" George Bush:

King George Blues

O Mr. Bush you scare me so
From the top of your head to your
little toe
You prowl the halls of Texas death row
Only the rich are in the know

(Chorus)
The fat men are in charge
The thin men take the barge
To hell, to hell, to hell

O demon of the hanging chad
How’d you get to be so bad?
You say the others are filled with evil
But you pray at the shrine of the black boll weevil

The fat men are in charge
The thin men take the barge
To hell, to hell, to hell

It used to be we’d never attack
Now our troops march through Iraq
You don’t like a dictator named Saddam?
Just search him out and drop a bomb

The fat men are in charge
The thin men take the barge
To hell, to hell, to hell

O tool of big bucks oil
How you make my blood boil
You stomp the poor and make them toil
For nickels, for pennies, for nothing at all

The fat men are in charge
The thin men take the barge
To hell, to hell, to hell


Paul Auster March 2003
Band: One Ring Zero

terça-feira, 23 de novembro de 2004

A entrevista da VISÃO de 28 /X/04:


O Outono de Mr. Auster
Visitou Lisboa em 1995 e, desde então, guarda o desejo de regressar. Talvez por isso tenha Paul Auster posto Portugal no enredo do seu mais recente romance, A Noite do Oráculo. A anteceder a tradução portuguesa da obra, que no próximo dia 9 será posta à venda, o escritor abriu à VISÃO as portas da sua casa em Nova Iorque. Para falar de livros, de cinema, de política. E da vida que, agora, aos 57 anos, lhe dá uma outra estação
SARA BELO LUÍS / VISÃO nº 608 28 Out. 2004
Ali não há avenidas largas nem arranha-céus. Na 2nd. street de Brooklyn , o ambiente é próprio do bairro residencial que Paul Auster tantas vezes retratou nas suas ficções.
A copa das árvores cobre o passeio e as casas, alinhadas umas às outras, só têm dois pisos. À porta vem SiriHustvedt , a escritora e a mulher que Auster conheceu no dia 23 de Fevereiro de 1981, conforme deixou registado em Leviathan . Logo atrás vem Paul Auster .
E, já durante a entrevista com a VISÃO, há-de vir Sophie , chegada da escola com a mala carregada de livros. A família está preocupada porque Jack , o velho cão de que os leitores incondicionais de Auster também já ouviram falar, caiu das escadas na noite anterior.
Já houve quem por aqui andasse à procura da Nova Iorque do autor, seguindo os indícios por ele deixados na obra.
À esquina da rua onde vive Paul Auster , porém, não existe nenhuma tabacaria como a de Smoke e de BlueinThe Face, os filmes que WayneWang realizou sobre argumentos de Paul Auster . Nem tão-pouco a PaperPalace , a papelaria de A Noite do Oráculo, o seu mais recente romance cuja tradução portuguesa estará disponível nas livrarias já no próximo dia 9 com a chancela das Edições Asa. Nele, o escritor SidneyOrr ainda recupera de uma doença que lhe foi quase fatal quando descobre um caderno de fabrico português que o conduz de novo à escrita. Sob a influência desse pequeno bloco de notas, a personagem escreve na ideia de que o que escreve vai acabar por acontecer. A história de A Noite do Oráculo desenvolve-se depois no sistema de caixas chinesas que Paul Auster tanto aprecia. Do enredo principal ao romance dentro do romance, das notas de rodapé à reprodução de uma misteriosa lista telefónica da Polónia, Portugal surge como um país «perfeito»: «Pessoa é um dos meus escritores preferidos. Deitaram abaixo Salazar e agora têm um governo decente. O terramoto de Lisboa inspirou Voltaire a escrever Candide . E Portugal ajudou milhares de Judeus a fugirem da Europa durante a guerra. É um país bestial.» Parece uma ironia, mas – como adiante se verá – Paul Auster já não visita Portugal desde 1995. Quer voltar. Para, com SiriHustvedt , ir às Janelas Verdes ver os quadros de HieronymusBosh que estão no Museu de Arte Antiga.
VISÃO: A Noite do Oráculo começa com um caderno de capa azul madein Portugal que altera completamente a vida do protagonista, SidneyOrr . Os seus leitores portugueses querem saber – de onde veio este caderno?
PAUL AUSTER: Claro que eles querem saber, mas na verdade não posso dar-lhes uma resposta muito precisa. Pensei pela primeira vez na ideia de escrever um livro sobre um caderno em 1982, justamente o ano em que decorre A Noite do Oráculo. Na altura escrevi algumas páginas que, no entanto, acabaram por ficar de lado à espera do dia certo. Porque é que o caderno é feito em Portugal? Não consigo dizê-lo. Estive em Portugal duas vezes, a última das quais em 1995 e, desde então, nunca mais lá voltei. Achei Lisboa uma cidade extremamente interessante, gostei de passear por Alfama e, se calhar, foi por isso que me lembrei de Portugal. Talvez tenha sido por causa do meu desejo de voltar. Talvez agora seja tempo de voltar.
Há muitas histórias dentro da história principal do livro. Afinal, A Noite do Oráculo é uma história de amor ou um romance sobre o modo como a ficção pode tornar-se realidade?
A história de amor é que é o motor. Depois, ao longo do livro, há muitas digressões, pequenos desvios e alguns atalhos. No entanto, eu não penso em A Noite do Oráculo como uma exploração da imaginação versus realidade. Para mim, A Noite do Oráculo é antes uma meditação sobre o tempo. Se pensarmos bem, há nele muitas referências a acontecimentos históricos, a grandes eventos do passado – há a I Guerra Mundial, a II Guerra Mundial, o assassinato de Kennedy e também a Revolução Cultural na China. Quase tudo no livro é sobre o tempo.
E quando é que decidiu regressar às páginas escritas em 1982?
Os elementos foram surgindo.
À história do caderno juntou-se uma outra história, baseada no episódio Flitcraft de O Falcão de Malta, de DashiellHammett , que era suposto ter sido a base de um argumento para um filme de WimWenders . Contudo, o momento crucial ocorreu mais tarde, em Novembro de 1998. Quando Lulu ontheBridge saiu, fui a Varsóvia para promover o filme. O meu editor polaco disse-me que me queria dar um presente muito especial e ofereceu-me uma lista telefónica de Varsóvia de 1938 onde havia um Auster que, provavelmente, terá sido meu parente. Fiquei muito perturbado com aquela lista de nomes, de milhões de pessoas que, dali a dois ou três anos, teriam morrido.
Tentou encontrar alguma relação com esse Auster ?
Não. Mas o mais espantoso ainda foi quando, no ano passado, fui entrevistado por um jornalista polaco, a propósito do lançamento nos Estados Unidos de
A Noite do Oráculo. Sentado nessa mesma cadeira em que está agora, ele suava e tremia. E disse-me que o casal que eu descrevo muito brevemente, provavelmente familiares de SidneyOrr , eram os seus pais. Fiquei muito inquieto com tudo aquilo. Com tanta gente que há no mundo… Portanto, coisas estranhas continuam a acontecer…
Relacionando as suas últimas obras, tanto David Zimmler , de O Livro das Ilusões, como agora SidneyOrr , de A Noite do Oráculo, estão a tentar refazer a vida.
…E Willy , de Timbuktu , está a morrer. Foi, aliás, por isso que eu comecei a chamar-lhes os meus livros de homens feridos. E há ainda o que acabei de escrever há cerca de um mês, que se chamará TheBrooklyn Folies, cujo narrador tem 60 anos, era mediador de seguros de vida mas agora está reformado, acabou de se divorciar e tem cancro. É um romance… ou uma comédia no sentido em que a maior parte das pessoas é melhor no fim do que no princípio.
E qual a razão desses livros de homens feridos?
Não escrevemos sobre as nossas obsessões? Penso que, provavelmente, é porque estou a envelhecer. Durante anos e anos somos saudáveis e fortes. Depois, a fragilidade do nosso próprio corpo não só se torna evidente como a ideia da nossa própria morte nos aparece muito mais real. Tudo isto me aconteceu depois de atravessar os 50 anos.
Sidney Orr tem uma forma muito obsessiva de escrever. O ambiente de escrita da personagem tem alguma coisa a ver com o ambiente de escrita do escritor?
Tudo em mim é diferente de SidneyOrr . Eu não escrevo assim, eu vivo com as histórias durante anos antes mesmo de as escrever. Além disso, também nunca roubei o corpo de outro para descrever uma personagem…
Quando começa um novo romance conhece-lhe o princípio, o meio e o fim?
Tenho uma noção da trajectória do livro. Mas depois, enquanto escrevo, a história está sempre a mudar. Por exemplo, em O Livro das Ilusões, a ideia original era escrever uma pequena novela sobre David Zimmler e HectorMann e, na segunda parte, falar sobre os filmes. Tudo isso foi mudando imenso durante a escrita, como antes nunca tinha acontecido comigo.
E as personagens?
Habitualmente, as personagens vêm sempre antes. Às vezes, surgem-me e eu não sou capaz de deixar de pensar nelas. Um dia, há uns 15 anos, veio ter comigo um homem de bigode e fato branco – vi logo HectorMann naquele rosto.
De onde lhe vem este interesse pelas histórias dentro das histórias?
Não é a forma que dita o conteúdo do livro. E por isso eu nunca digo para mim mesmo que me apetece fazer histórias encadeadas. Tudo isso se desenvolve organicamente. Também escrevi livros que seguem em linha recta como Mr . Vertigo ou A Música do Acaso.
Em A Trilogia de Nova Iorque havia uma personagem que fingia ser Paul Auster . Agora, em A Noite do Oráculo, o apelido de JohnTrause é um anagrama do seu apelido.
Ele não me representa. Mas veja bem: a história tem dois romancistas, um tem 34 anos e outro tem 56. No fundo, esse período corresponde exactamente à extensão da minha própria vida literária enquanto romancista. Acho que, primeiro, estava a pensar em mim próprio jovem e, depois, em mim próprio velho. Quis enterrar-me algures naqueles livros.
E agora, já se sente mais confortável nos seus 57 anos?
Se me sinto confortável? Sei que o Paul Auster dos 30 anos já não vai regressar.
Durante vários anos, dedicou-se a traduzir livros do francês para o inglês. Encontrou na tradução o prazer do jogo de palavras ou uma outra forma de escrever?
Essa história tem várias etapas. Numa primeira fase, quando tinha 20/30 anos, traduzi muita poesia francesa. E hoje percebo quanto esse exercício me ajudou enquanto poeta. Não há, de facto, melhor forma de compreender um texto que dissecá-lo palavra a palavra, músculo por músculo, osso por osso e, depois, tornar a compô-lo noutra língua. Mais tarde, encontrei na tradução uma forma de ganhar a vida. Mas nestes casos a dor de traduzir livros medíocres era tão grande que o fazia tão depressa quanto possível.
Está a pensar regressar ao cinema?
Nas últimas três semanas tenho estado a trabalhar num guião de um filme de PatriceLeconte . Não vou estar envolvido na produção, mas não consegui recusar uma proposta tão interessante. Normalmente, fico bastante triste depois de acabar um livro e agora, ao terminar TheBrooklyn Folies, entrei numa depressão que me fazia andar às voltas. Sentia-me perdido e, por isso, pensei que talvez fosse bom dedicar-me ao guião.
De que trata esse guião?
De certa maneira, trata-se do filme mais politicamente empenhado que eu alguma vez fiz. Passa-se quase sempre em Queens e o herói da história é um americano de origem árabe, um egípcio. A história gira à volta de todas as dificuldades com que ele se depara no pós-11 de Setembro. É um filme muito oportuno porque fala do que está a acontecer agora nos Estados Unidos. Espero sinceramente que o projecto seja concretizado.
Depois do 9/11, sente que o regresso à normalidade chegou algum dia a ocorrer?
É uma pergunta difícil de responder.
É um facto que as pessoas continuam a acordar de manhã, que os adultos vão trabalhar e que as crianças vão para a escola. E, neste sentido, a vida continuou. Mas, ao mesmo tempo, a atmosfera do país mudou completamente.
Do país ou da cidade de Nova Iorque?
Mais do país do que da cidade. Apesar de ter sido aqui que fomos atacados, penso que não vivemos no clima e no estado de pânico em que vivem muitas outras pessoas no resto do país. Na minha opinião, a administração Bush alimentou essa
atmosfera de medo. E fê-lo de propósito, segundo uma estratégia extremamente perigosa que não nos ajudou – nem a nós nem ao mundo inteiro. Há uns dias, JohnKerry disse qualquer coisa como «gostaria de reduzir o terrorismo», demonstrando que aquela era a forma de encarar os problemas do mundo. No debate de ontem à noite [o último dos três debates entre os candidatos, realizado a 13 de Outubro], Bush gozou com o que Kerry tinha dito, argumentando que o terrorismo tem maior controlo sobre as nossas vidas do que Kerry pensa. E, a meu ver, ele está a empolar o problema.
Há quem diga que a América está completamente dividida e polarizada. Concorda?
Sim, absolutamente. Por um lado, há a parte Norte da Costa Leste, a região dos Grandes Lagos e a Costa Oeste, que são liberais e seculares. Por outro lado, há o Sul, o Midwest e o LowerMidwest , que são muito conservadores e muito cristãos. E o que me preocupa é que a comunicação entre ambos se está a tornar cada vez mais difícil. Estamos a viver uma verdadeira guerra cultural na América.
Não terá sido sempre assim?
Não, nem sempre. Alguém dizia noutro dia que nem no tempo de RonaldReagan , um Presidente que eu odiava, havia tão pouca cooperação no Congresso entre democratas e republicanos. Eles não cooperam, eles não colaboram, eles não conseguem chegar a um consenso. Eles limitam-se a guerrear-se. Do meu ponto de vista, os republicanos mais conservadores levaram tão longe as suas ideias que até demonizaram pessoas que não passam de moderados. Nos últimos quatro anos, vive-se num ambiente assustador neste país.
O que é que lhe parece que vai acontecer a 2 de Novembro?
Tenho esperanças que Kerry vença. Desde o princípio da campanha que acho que ele vai ganhar e, apesar dos momentos difíceis que têm ocorrido, ainda sinto que ele vai ganhar. Ninguém que tenha votado em Al Gore nas eleições de 2000 vai, em 2004, votar em Bush . No entanto, muitas das pessoas que votaram em Bush desta vez não vão votar, pois ele até conseguiu virar contra ele alguns dos republicanos mais tradicionais. Quando viajo, falo sempre com as pessoas para tentar perceber o que é que elas pensam. E tenho encontrado muita gente que sempre votou no Partido Republicano e que, agora, me diz que «só por cima do meu cadáver eu votaria em George W. Bush ». Podemos por isso ter uma grande surpresa a 2 de Novembro.
Acha que JohnKerry é um candidato forte?
À medida que o vou vendo e ouvindo, vou gostando cada vez mais dele. No princípio, não estava muito entusiasmado, embora agora ache que ele se saiu muito bem nos debates. O seu discurso é coerente e parece-me que ele tem uma visão do mundo que não é desprezível. Eu teria adoptado uma posição ainda mais dura, mais à esquerda, mas compreendo que, neste clima particular, a posição de JohnKerry faça mais sentido para a generalidade do povo americano.
Participou em algumas iniciativas de recolha de fundos para a campanha de Kerry . Em sua opinião, qual é o papel dos intelectuais nos dias de hoje?
Também somos cidadãos e, como tal, temos direito de expressar as nossas opiniões. Penso que, em tempos difíceis como estes que estamos a viver, devemos erguer a voz. Esta entrevista, por exemplo, começou por ser uma entrevista literária e, agora, está a fazer-me perguntas políticas. E por isso eu digo o que penso.
Há quem argumente que um escritor deve limitar-se a escrever enquanto que um político deve limitar-se a fazer política.
Às vezes até há escritores que se tornam políticos. E políticos que lêem livros. Em certos países, como Israel, é vital que os escritores tenham voz. As pessoas ouvem David Grossman ou Amos Oz . Imagine-
-se como seria aquele país se homens como estes não tivessem a coragem de escrever e expressar a sua opinião.
Alguma vez pensou em voltar para a Europa?
Às vezes, eu e a Siri [ SiriHustvedt , a mulher] dizemos que, se Bush ganhar, vamos para outro sítio qualquer. Porém, isso não passa de uma brincadeira. Estamos empenhados em ficar aqui. Vivi em França numa época muito especial. Eu era muito novo, estava muito envolvido na política e havia a Guerra do Vietname. Queria escrever, mas não conseguia concentrar-me. E, na altura, pensei que, saindo dos Estados Unidos, talvez pudesse ter a paz necessária para decidir o que queria fazer no futuro. Cheguei à Europa sem saber se era um escritor e voltei para casa com essa certeza.
Sente-se verdadeiramente americano?
Não ponho rótulos em mim mesmo. Vivo aqui, escrevo em inglês e, nos meus livros, falo sobre a América. Este é o meu lugar. Este é o meu mundo. Mas, ao mesmo tempo, não só viajo como estou atento ao que se passa noutros sítios. Acho que todo o americano tem um pé na América e um pé noutro sítio qualquer.
E onde está o outro pé do Paul Auster ?
Sim, talvez esteja algures na Europa. Espiritualmente. [# FimNoticia ]



E de um outro blog (http://memoriavirtual.weblog.com.pt/) encontrei este comentário:

"A NOITE DO ORÁCULO" (I)
Em “A Noite do Oráculo”, Paul Auster prossegue a sua incessante busca do "eu", por via do "outro".
Com uma abordagem recorrente, Auster projecta-se na personagem principal do livro (um escritor) e vai-nos contando histórias dentro de histórias, dentro de histórias!
Introduzindo uma “novidade” (pelo menos com a dimensão que assume nesta obra), as extensas notas de rodapé, completando informação sobre circunstâncias passadas, dando-nos um enquadramento como que num flashback.
O “misticismo” associado ao estranho caderno azul português transporta-nos ao longo de uma história intrigante, complementada pela história do livro que o protagonista tenta escrever, até chegar a um “beco sem saída”.

Tínhamos acordado que assim que fosse publicado o "Oracle Night" do Paul Auster em Português, essa seria a nossa escolha de leitura. Como o prometido é devido, é esse o nosso livro deste mês.
Procurarei, assim que possa, algumas informações complementares na net que colocarei aqui no Blog, como já vem sendo hábito, convidando todas a fazer o mesmo.

Boas leituras!

Como habitualmente, aqui fica o resumo da discussão de "A sombra do vento", de Carlos Ruiz Zafón:

Após o esforço da leitura de “Vermelho”, de Mafalda Ivo Cruz, a opinião generalizada sobre este livro foi que proporcionou uma leitura muito agradável e fluida. Todas reconhecemos que se trata de uma história bem contada, que prende o leitor, e com personagens bem desenvolvidas e muito cativantes. Foram, no entanto, feitos alguns reparos a aspectos menos positivos da obra.
A Rita começou por referir alguma falta de qualidade da tradução, nomeadamente na inclusão de algumas expressões do quotidiano como “é boa como o milho”, que pertencem a um nível de linguagem muito baixo e que, além disso, soam muito inverosímeis em personagens dos anos 50. Outras expressões como “por causa das moscas”, parecem estar demasiado coladas ao original em espanhol, quando, pelo sentido, em português faria mais sentido uma expressão como “não vá o diabo tecê-las”. O original em espanhol está também pejado de expressões populares, pelo que parte do problema não será da tradução mas do próprio texto, que mistura níveis de linguagem muito diferentes. Poder-se-ia dizer que é um dos traços distintivos de uma personagem em particular – o Fermín – que funciona um pouco como a personagem pícara. Não deixa de ser um aspecto que surge referido nas críticas ao livro como um dos mais negativos. A Rita aproveitou para ler algumas passagens de uma crítica que surgiu na imprensa escrita que referia a “linguagem e registo de leitura demasiado fáceis”. Eu, que optei pela leitura da versão original, referi ainda a repetição de alguns vocábulos (como espejismo . miragem, ilusão; e títeres – fantoches) até à exaustão, quando poderiam ter sido utilizados sinónimos. Será talvez uma marca de alguma imaturidade por falta do autor, ou da falta de um bom editor de texto, que facilmente teria notado tal repetição. Quanto ao nível da linguagem, especulámos que seria, de certo modo propositado na medida em que o texto se parece adequar perfeitamente a uma adaptação ao cinema, e esta simplificação da linguagem seria, assim, uma marca de um argumento para um filme destinado a um público alargado. Claro, que há que ter em consideração que, na passagem de qualquer obra literária para argumento cinematográfico, há uma adequação da linguagem (estou a lembrar-me de uma excepção, como a versão de "Romeu e Julieta", de Baz Luhrmann, de 1996, que transpõe a acção para um moderno subúrbio de Verona, mas opta por manter os diálogos originais) pelo que não teria necessariamente que ter lugar na obra escrita. Foi referido, no entanto, que Carlos Ruiz Zafón é também escritor de argumentos para cinema e poderá ter deixado marcas desse trabalho neste livro.
Também em relação ao próprio desenrolar da narrativa foram notadas algumas falhas. A Rosária referiu que Daniel, o protagonista, chegava com demasiada facilidade à informação, com todas as personagens secundárias que encontrava a fornecerem-lhe sem resistência as peças do puzzle com que reconstruiu a trajectória de Julián Carax. A Jennifer afirmou ainda que, muitas dessas personagens referiram eventos e diálogos que não podiam conhecer, como foi o caso da Nuria Monfort ou, principalmente do Padre Fernando, em relação a aspectos da relação entre os outros rapazes do grupo de estudantes do colégio. Também referimos que aquele relato que Nuria faz chegar a Daniel após o seu assassinato é, em termos de estratégia narrativa, demasiado óbvio como forma de completar as lacunas da história.
Referi ainda os pequenos reparos feitos por um leitor que deixou um comentário à obra numa página web: 1º Nessa época ainda não havia Sugus. 2º A linha 5 não chegava ao Hospital Clínico. 3º É impossível demorar 20 minutos para ir da Praça da Universidade à Praça da Catalunha pela Rua Tallers. Quanto ao 2º e 3º reparo, seria necessário conhecer muito melhor Barcelona e a sua história para averiguar da sua veracidade. Quanto ao primeiro, bastou-me colocar “Sugus” no motor de pesquisa Google para descobrir se estava certo ou não. O que descobri ao ler a história dos famosos caramelos de fruta quadradinhos que consta da página da Kraft Foods (www.kraftfoods.ch), a multinacional que os comercializa, foi que a receita original foi inventada pela filial polaca da firma suiça Suchard em 1929. Em 1946 começam a ser exportados para a América do Sul, Ásia e África. Mas só em 1960 começam a ser comercializados em Espanha (tal como em Portugal). Como tal, em 1950s, os famosos Sugus não poderiam estar a ser consumidos pelo Fermín. Claro que todas reconhecemos que são erros muito pequenos e que são apenas curiosidades, embora, com a facilidade de acesso à tecnologia, bastassem apenas alguns segundos para verificar estes dados. À margem deste pequeno reparo, não deixámos de nos espantar com a longevidade de alguns produtos, como os ditos Sugus, ou a Coca-cola, que consideramos imagem de marca da nossa geração, mas que afinal já vêm de muito mais longe.
Algumas leitoras referiram ainda que, a um dado momento da leitura, sentiram algum receio que a narrativa iria “descambar” para uma inverosimilhança total, como o relato na primeira pessoa de Daniel a surgir como uma “voz do além”. Afinal a morte do protagonista foi temporária e é um narrador de carne e osso que nos relata os acontecimentos. Sentimos todas que o artifício era algo forçado. (Uma das leitoras queixou-se ainda que uma “certa” outra leitora lhe tinha estragado o suspense ao contar que Daniel não iria morrer afinal. Tss tss tss!!). Também achámos que a história se resolve demasiado, com direito a happy ending e todos os conflitos a serem solucionados, quer com a morte do vilão (o inspector Fumero), quer com Julián Carax, a personagem mais ambígua, a encontrar um novo sentido para a vida e um motivo para voltar a escrever.
Mas ao contrário do que este resumo pode fazer parecer, o balanço final da leitura foi claramente positivo, com o livro a proporcionar horas (muitas…) de prazer. Gostámos particularmente de algumas personagens, estando a ama Jacinta e Fermín no “top” das preferências. Achámos que todas elas estão bem construídas, sólidas, algumas profundamente trágicas mas que, ainda assim, encontram forças para recomeçar e encarar a vida de frente (como o Fermín). Eu pessoalmente achei que havia um certo maniqueísmo, com a existência de um eixo do bem, protagonizado por Daniel e Fermín, e um eixo do mal, protagonizado por Fumero. A Jennifer discordou, argumentando que algumas personagens evoluem, como o industrial Aldaya, que só vem a manifestar a sua perfídia no momento em que aprisiona a filha Penélope no sótão durante toda a sua gravidez, provocando a morte à mãe e bebé. De facto, há uma galeria de personagens ambíguas como Jorge Aldaya ou, muito especialmente Julián Carax, personagem sombria e autor de actos de banditismo e que encontra um novo sentido para a vida por influência de Daniel, cuja trajectória de vida reflecte a sua (ou será ao contrário?). Também gostámos do cruzar das narrativas; passado e presente a reflectirem-se e a gerarem-se mutuamente, ficção a tornar-se realidade, e com esta a inspirar nova ficção num jogo de espelhos e de encaixes.
Mas os aspectos mais positivos do livro foram, na opinião de todas, as atmosferas criadas, com Barcelona a surgir como uma cidade sombria, envolta em nevoeiro e mistério. Fez-nos recordar, às felizes contempladas que já visitaram a cidade, o bairro gótico em volta da catedral, com as suas ruas estreitas e edifícios antigos e algo lúgubres. Considerámos o romance bastante “visual”, na medida em que esses ambientes foram evocados com muita exactidão. São talvez marcas da tal aproximação ao cinema, que já mencionámos. Gostámos particularmente da descrição da mansão dos Aldaya, “El ángel de bruma”, como ficou conhecida. Remete para as descrições góticas de mansões victorianas e é o palco perfeito para os acontecimentos misteriosos que aí têm lugar. E por último, aquela que consideramos ser a grande “invenção” deste livro, é o “Cemitério dos livros esquecidos”, um edifício fantástico, cujo interior se encontra repleto de passagens e corredores labirínticos, e para onde são enviados todos os livros de colecções particulares cujos donos falecem, acervos abandonados de bibliotecas, livrarias, etc. É uma espécie de depositário de todos os livros que, por uma razão ou por outra, vão caindo no esquecimento. Para além da homenagem óbvia ao conceito de labirinto de Jorge Luis Borges, este espaço adquire um significado extremamente ambíguo. Por um lado ele permite aos seus raros visitantes um processo iniciático na cultura livresca que, como no caso de Daniel, se pode tornar crucial para o seu crescimento enquanto pessoa. Por outro lado, duas palavras no nome do espaço contêm um valor conotativo bastante negativo: “cemitério” e “esquecidos”. Para além dos poucos livros que têm a oportunidade de ser “adoptados” pelos visitantes e assim voltar a ter um outro ciclo de vida, muitos milhares de volumes permanecerão para sempre no esquecimento. Pode ser interpretado como um símbolo do declínio do culto do livro em detrimento de uma cultura áudio-visual muito mais instantânea e fugaz. No entanto, e pela simples existência deste depósito de memórias e de História, há sempre a promessa de que um novo iniciado venha trazer à luz alguma dessas obras esquecidas. Lancei ainda uma proposta às restantes leitoras: de nos dirigirmos a um depositário de livros esquecidos (como um alfarrabista) e adoptarmos cada uma um livro, que estimássemos e guardássemos connosco durante toda a nossa vida. Fica a sugestão.