terça-feira, 23 de novembro de 2004

Como habitualmente, aqui fica o resumo da discussão de "A sombra do vento", de Carlos Ruiz Zafón:

Após o esforço da leitura de “Vermelho”, de Mafalda Ivo Cruz, a opinião generalizada sobre este livro foi que proporcionou uma leitura muito agradável e fluida. Todas reconhecemos que se trata de uma história bem contada, que prende o leitor, e com personagens bem desenvolvidas e muito cativantes. Foram, no entanto, feitos alguns reparos a aspectos menos positivos da obra.
A Rita começou por referir alguma falta de qualidade da tradução, nomeadamente na inclusão de algumas expressões do quotidiano como “é boa como o milho”, que pertencem a um nível de linguagem muito baixo e que, além disso, soam muito inverosímeis em personagens dos anos 50. Outras expressões como “por causa das moscas”, parecem estar demasiado coladas ao original em espanhol, quando, pelo sentido, em português faria mais sentido uma expressão como “não vá o diabo tecê-las”. O original em espanhol está também pejado de expressões populares, pelo que parte do problema não será da tradução mas do próprio texto, que mistura níveis de linguagem muito diferentes. Poder-se-ia dizer que é um dos traços distintivos de uma personagem em particular – o Fermín – que funciona um pouco como a personagem pícara. Não deixa de ser um aspecto que surge referido nas críticas ao livro como um dos mais negativos. A Rita aproveitou para ler algumas passagens de uma crítica que surgiu na imprensa escrita que referia a “linguagem e registo de leitura demasiado fáceis”. Eu, que optei pela leitura da versão original, referi ainda a repetição de alguns vocábulos (como espejismo . miragem, ilusão; e títeres – fantoches) até à exaustão, quando poderiam ter sido utilizados sinónimos. Será talvez uma marca de alguma imaturidade por falta do autor, ou da falta de um bom editor de texto, que facilmente teria notado tal repetição. Quanto ao nível da linguagem, especulámos que seria, de certo modo propositado na medida em que o texto se parece adequar perfeitamente a uma adaptação ao cinema, e esta simplificação da linguagem seria, assim, uma marca de um argumento para um filme destinado a um público alargado. Claro, que há que ter em consideração que, na passagem de qualquer obra literária para argumento cinematográfico, há uma adequação da linguagem (estou a lembrar-me de uma excepção, como a versão de "Romeu e Julieta", de Baz Luhrmann, de 1996, que transpõe a acção para um moderno subúrbio de Verona, mas opta por manter os diálogos originais) pelo que não teria necessariamente que ter lugar na obra escrita. Foi referido, no entanto, que Carlos Ruiz Zafón é também escritor de argumentos para cinema e poderá ter deixado marcas desse trabalho neste livro.
Também em relação ao próprio desenrolar da narrativa foram notadas algumas falhas. A Rosária referiu que Daniel, o protagonista, chegava com demasiada facilidade à informação, com todas as personagens secundárias que encontrava a fornecerem-lhe sem resistência as peças do puzzle com que reconstruiu a trajectória de Julián Carax. A Jennifer afirmou ainda que, muitas dessas personagens referiram eventos e diálogos que não podiam conhecer, como foi o caso da Nuria Monfort ou, principalmente do Padre Fernando, em relação a aspectos da relação entre os outros rapazes do grupo de estudantes do colégio. Também referimos que aquele relato que Nuria faz chegar a Daniel após o seu assassinato é, em termos de estratégia narrativa, demasiado óbvio como forma de completar as lacunas da história.
Referi ainda os pequenos reparos feitos por um leitor que deixou um comentário à obra numa página web: 1º Nessa época ainda não havia Sugus. 2º A linha 5 não chegava ao Hospital Clínico. 3º É impossível demorar 20 minutos para ir da Praça da Universidade à Praça da Catalunha pela Rua Tallers. Quanto ao 2º e 3º reparo, seria necessário conhecer muito melhor Barcelona e a sua história para averiguar da sua veracidade. Quanto ao primeiro, bastou-me colocar “Sugus” no motor de pesquisa Google para descobrir se estava certo ou não. O que descobri ao ler a história dos famosos caramelos de fruta quadradinhos que consta da página da Kraft Foods (www.kraftfoods.ch), a multinacional que os comercializa, foi que a receita original foi inventada pela filial polaca da firma suiça Suchard em 1929. Em 1946 começam a ser exportados para a América do Sul, Ásia e África. Mas só em 1960 começam a ser comercializados em Espanha (tal como em Portugal). Como tal, em 1950s, os famosos Sugus não poderiam estar a ser consumidos pelo Fermín. Claro que todas reconhecemos que são erros muito pequenos e que são apenas curiosidades, embora, com a facilidade de acesso à tecnologia, bastassem apenas alguns segundos para verificar estes dados. À margem deste pequeno reparo, não deixámos de nos espantar com a longevidade de alguns produtos, como os ditos Sugus, ou a Coca-cola, que consideramos imagem de marca da nossa geração, mas que afinal já vêm de muito mais longe.
Algumas leitoras referiram ainda que, a um dado momento da leitura, sentiram algum receio que a narrativa iria “descambar” para uma inverosimilhança total, como o relato na primeira pessoa de Daniel a surgir como uma “voz do além”. Afinal a morte do protagonista foi temporária e é um narrador de carne e osso que nos relata os acontecimentos. Sentimos todas que o artifício era algo forçado. (Uma das leitoras queixou-se ainda que uma “certa” outra leitora lhe tinha estragado o suspense ao contar que Daniel não iria morrer afinal. Tss tss tss!!). Também achámos que a história se resolve demasiado, com direito a happy ending e todos os conflitos a serem solucionados, quer com a morte do vilão (o inspector Fumero), quer com Julián Carax, a personagem mais ambígua, a encontrar um novo sentido para a vida e um motivo para voltar a escrever.
Mas ao contrário do que este resumo pode fazer parecer, o balanço final da leitura foi claramente positivo, com o livro a proporcionar horas (muitas…) de prazer. Gostámos particularmente de algumas personagens, estando a ama Jacinta e Fermín no “top” das preferências. Achámos que todas elas estão bem construídas, sólidas, algumas profundamente trágicas mas que, ainda assim, encontram forças para recomeçar e encarar a vida de frente (como o Fermín). Eu pessoalmente achei que havia um certo maniqueísmo, com a existência de um eixo do bem, protagonizado por Daniel e Fermín, e um eixo do mal, protagonizado por Fumero. A Jennifer discordou, argumentando que algumas personagens evoluem, como o industrial Aldaya, que só vem a manifestar a sua perfídia no momento em que aprisiona a filha Penélope no sótão durante toda a sua gravidez, provocando a morte à mãe e bebé. De facto, há uma galeria de personagens ambíguas como Jorge Aldaya ou, muito especialmente Julián Carax, personagem sombria e autor de actos de banditismo e que encontra um novo sentido para a vida por influência de Daniel, cuja trajectória de vida reflecte a sua (ou será ao contrário?). Também gostámos do cruzar das narrativas; passado e presente a reflectirem-se e a gerarem-se mutuamente, ficção a tornar-se realidade, e com esta a inspirar nova ficção num jogo de espelhos e de encaixes.
Mas os aspectos mais positivos do livro foram, na opinião de todas, as atmosferas criadas, com Barcelona a surgir como uma cidade sombria, envolta em nevoeiro e mistério. Fez-nos recordar, às felizes contempladas que já visitaram a cidade, o bairro gótico em volta da catedral, com as suas ruas estreitas e edifícios antigos e algo lúgubres. Considerámos o romance bastante “visual”, na medida em que esses ambientes foram evocados com muita exactidão. São talvez marcas da tal aproximação ao cinema, que já mencionámos. Gostámos particularmente da descrição da mansão dos Aldaya, “El ángel de bruma”, como ficou conhecida. Remete para as descrições góticas de mansões victorianas e é o palco perfeito para os acontecimentos misteriosos que aí têm lugar. E por último, aquela que consideramos ser a grande “invenção” deste livro, é o “Cemitério dos livros esquecidos”, um edifício fantástico, cujo interior se encontra repleto de passagens e corredores labirínticos, e para onde são enviados todos os livros de colecções particulares cujos donos falecem, acervos abandonados de bibliotecas, livrarias, etc. É uma espécie de depositário de todos os livros que, por uma razão ou por outra, vão caindo no esquecimento. Para além da homenagem óbvia ao conceito de labirinto de Jorge Luis Borges, este espaço adquire um significado extremamente ambíguo. Por um lado ele permite aos seus raros visitantes um processo iniciático na cultura livresca que, como no caso de Daniel, se pode tornar crucial para o seu crescimento enquanto pessoa. Por outro lado, duas palavras no nome do espaço contêm um valor conotativo bastante negativo: “cemitério” e “esquecidos”. Para além dos poucos livros que têm a oportunidade de ser “adoptados” pelos visitantes e assim voltar a ter um outro ciclo de vida, muitos milhares de volumes permanecerão para sempre no esquecimento. Pode ser interpretado como um símbolo do declínio do culto do livro em detrimento de uma cultura áudio-visual muito mais instantânea e fugaz. No entanto, e pela simples existência deste depósito de memórias e de História, há sempre a promessa de que um novo iniciado venha trazer à luz alguma dessas obras esquecidas. Lancei ainda uma proposta às restantes leitoras: de nos dirigirmos a um depositário de livros esquecidos (como um alfarrabista) e adoptarmos cada uma um livro, que estimássemos e guardássemos connosco durante toda a nossa vida. Fica a sugestão.

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