terça-feira, 19 de outubro de 2004

Aqui fica um comentário que recebi da Ana Cristina:

olá
fui ao site da fnac e está lá, o último livro de Arturo Pérez-Reverte chama-se A Tábua de Flandres. Deste autor acabei de ler O Mestre de Esgrima e gostei muito, é empolgante da primeira à última página. Se o Carlos Ruiz Zafón é um 'herdeiro' do Pérez-Reverte, como diz na contra capa do A Sombra do Vento, então isto promete!

Já agora, e para futura referência, as sugestões de leitura que surgiram na última reunião:

- “As lágrimas da girafa”, de Alexander Mcall Smith

- “Rafael”, de Manuel Alegre

- a última obra de Pérez-Reverte

- “Dias Tranquilos”, de Kenzaburo Oé

- “Os jardins da memória”, de Orhan Pamuk

- “A sombra do vento”, de Carlos Ruiz Zafón

- “Lust” da mais recente laureada com o prémio Nobel da literatura, Elfriede Jelinek

- “As velas ardem até ao fim”, de Sandor Marai

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Tal como prometido, e ainda bem dentro do prazo de validade, aqui fica um resumo da discussão de “Vermelho”, de Mafalda Ivo Cruz, como sempre sujeito às vossas críticas, sugestões e acrescentos (venham eles!!):

Pelos comentários que fomos partilhando ao longo do mês durante a leitura percebemos que o livro não estava a ser muito bem aceite pelas leitoras e que a discussão prometia ser arrasadora. E, de facto, assim foi, com quase toda a gente a declarar abertamente ter detestado o livro e tendo mesmo havido uma das leitoras que se recusou a ler mais do que metade do mesmo, por opinar que não valia a pena perder mais tempo com a sua leitura.

Algumas leitoras manifestaram a opinião que a autora não soube contar uma história e que nem sequer escrevia bem. Algumas terminaram só por “obrigação”, mas fizeram uma leitura corrida, sem se deterem muito nos detalhes, e ficaram, se assim se pode dizer, “imunes” ao livro, não lhes ficou muito da leitura. A nossa estreante, a Rosária, admitiu que se sentiu um pouco assustada durante a leitura, a pensar que seria a única que não estava a perceber grande coisa da obra e com receio de chegar à reunião sem muito para dizer sobre ele. Afinal concluiu que até percebeu minimamente o texto e que desorientação foi geral. Algumas pessoas sentiram necessidade de ir fazendo notas, ou uma árvore genealógica, para irem construindo o sentido da narrativa. Foi o meu caso e o da Guida, que mostrámos ao resto do grupo essas anotações.

Apenas a Ana e eu (a Cristina) manifestámos uma opinião mais favorável do livro. A Ana reconheceu que lhe deu um certo gozo a leitura, na medida em que gostou de destrinçar o sentido e ir construindo a sua interpretação da história. Foi uma leitura estimulante pelo seu carácter de desafio. Admitiu, porém, uma tendência para gostar do absurdo, e de textos que reflictam a complexidade da natureza humana. Contou ainda uma peripécia curiosa do seu processo de leitura: ela e a Guida foram lendo a obra a par e passo e apoiando-se na interpretação por SMS. Ora aqui está uma utilização criativa das novas tecnologias ao serviço das antigas! Sugeri que se utilizasse o blogue para essas trocas de ideias ao longo da leitura. Eu, pelas mesmas razões da Ana, também não desgostei do livro, e acrescentei que também não opinava que a autora escrevesse mal, embora me tivesse chocado a desarticulação dos vários registos de linguagem presentes no texto. Coabitam na obra um registo mais culto e mais clássico com outro muito mais baixo, que, apesar de coerente com a condição de toxicodependente a morar numa zona completamente degradada do narrador, não se encaixam minimamente. Dá a sensação que a autora pretendeu dar um tom mais contemporâneo à sua prosa, e apenas conseguiu desvirtuá-la. Estabelecemos uma comparação com a prosa de José Luís Peixoto, que utiliza calão e um registo linguístico por vezes muito afastado do normal na literatura portuguesa, mas que o faz de forma magistral, conferindo ao seu universo muito próprio uma coerência e uma eficácia que o torna fascinante.

A Ana avançou com uma teoria de que haveria vários narradores na história e que uns seriam a reincarnação dos anteriores. De facto, além da figura de Afonso de Amadeu ser referida progressivamente como “avô”, “bisavô” e “trisavô”, a palavra reencarnação surge mencionada pela autora, naquela que é, a meu ver, a mais incompreensível passagem do livro, e precisamente a escolhida para a contracapa: “An dich hab ich gedacht [Pensei em ti]. Numa das minhas encarnações de mulher estava sentada com um livro ao colo, um objecto magnífico, mas não lia.” (p. 74). Não interpretei a polifonia do narrador como tendo algo a ver com reincarnação, mas talvez fosse interessante explorar esta hipótese. Para além deste pequeno trecho para o qual não encontro explicação, excepto talvez tratar-se de uma incursão de prosa poética da própria autora, detectei dois narradores distintos: Tito, o narrador de quase todo o livro, e Dária, que assume a narração por momentos e descreve nomeadamente a sua relação com o pai. Quanto a alguma confusão nos parentescos, com as palavras avô, bisavô ou trisavô a surgirem algo indiscriminadamente, penso que só contribui para salientar qual é, a meu ver, a personagem principal desta obra: o sangue. O sangue que corre nas veias destas personagens e que tem a sua génese na figura patriarcal de Afonso de Amadeu. Tal como no Livro do Génesis, citado constantemente, Deus cria o mundo, os animais e os homens, também esta figura de Afonso se recria a si próprio (é mencionado que o seu nome e posição na ilha do Sal são falsos) e é a génese de uma linhagem. A sua amante, Isaura de Jesus Maria, a figura matriarcal por excelência, referida amiúde como a “alma”, viria, um dia após a morte de D. Afonso, a casa os seus filhos António, Leonardo, Gustavo e Sebastião, com as filhas provenientes dos casamentos de Afonso com as Rosas, Alice, Leonor, Ana Luzia e Gervásia. Por outro lado, as crianças não descendentes de Afonso, frutos de aventuras de Isaura com outros homens, despeitada cada vez que Afonso casava com uma das irmãs Rosas, eram mortas com requintes de malvadez. Afonso deixava as crianças viver até aos sete, oito anos e nessa altura enforcava-os, na presença da mãe. Foi o que aconteceu com Josias, Josué, José, Ismael e Saúl, tudo nomes bíblicos e aquela que é chamada a linhagem dos mortos, da qual Tito afirma, já quase no fim do livro, descender. Discutimos sobre se Isaura teria alguma escolha nesses acontecimentos. Concluímos que sim, que faria parte da sua opção de permanecer ao lado de Afonso o facto de prescindir dos filhos que resultassem de ligações com outros homens. Também salientámos o carácter cruel e repugnante destas cenas.

Relacionámos a formação musical da autora com a própria estrutura do romance, que considerámos bastante análoga a uma partitura musical. As frases são, muitas vezes curtas, a sintaxe não segue em muitos casos, as normas, criando uma cadência e uma musicalidade muito própria. Além disso, há refrões, pequenas notas, que se vão repetindo ao longo do texto. Muitas dessas notas recorrentes vão adquirindo sentido à medida que vão surgindo contextualizadas.

Algumas dessas recorrências são muito curiosas, nomeadamente a referência a um pequeno tocador de tambor. Trata-se de uma pequeno participante nas guerras napoleónicas na Rússia, aquando da retirada, que a dada altura adormece no cadeirão de Napoleão. A atitude mais normal, perante tal desrespeito, seria acordar e punir o pequeno. No entanto, e perante a eminência de uma batalha que muito provavelmente terminaria com a sua morte, o imperador decide deixar dormir o menino com uma simples frase: “Laissez-le”. Diz o texto: “Há qualquer coisa de sentença de morte no acto de conceder mais uma noite. Mais quatro ou cinco horas.” (p. 35). A expressão petit tambour surge repetidamente e atribuída a várias personagens, especialmente o pequeno negro albino e Tito. De facto, várias personagens sentem na pele a ambiguidade do acto aparentemente magnânimo de prolongar a vida: a linhagem dos mortos, os pobres meninos a quem era permitido chegar à idade de sete ou oito anos para depois serem enforcados; José, o menino albino, mantido num cativeiro cruel, a quem é providenciado o prazer físico para depois lhe ser negado, fazendo-o morrer de solidão; ou Tito, o narrador, que vive na suspeita constante de que primeiro Nina, e depois Nina e Lena, o querem envenenar. É a morte que paira sobre as personagens e a crueldade do prolongamento das suas vidas sem sentido.
Alguns objectos adquirem especial importância na narrativa. Entre eles está o cadeirão de D. João V, um dos símbolos de Afonso de Amadeu. É neste cadeirão que se funda a sua linhagem, simbolizada pela mancha de urina, esperma e sangue no tecido de Damasco. Outro objecto é o Livro de Assentos, onde D. Afonso inscreve todos os acontecimentos que dizem respeito à família. É associado ao Livro de Génesis da Bíblia, como o início de tudo, a descrição da criação do mundo. D. Afonso inventa-se e inventa um novo mundo. Podíamos acrescentar que qualquer livro de ficção é um Livro de Génesis, na medida em que cria o seu próprio mundo e qualquer escritor é Deus e Senhor dos seus mundos inventados. O puzzle é, a nosso ver, um dos objectos chave para a compreensão do texto. Para além da relevância da própria cena que compõe o puzzle (uma cena de caça, sangue, uma figura feminina algo desenquadrada na imagem), o próprio movimento de construção do puzzle, com as peças a encaixarem progressivamente, é análogo à forma como o romance está construído, com as informações sobre as personagens e suas histórias a surgirem a pouco e pouco. Também o facto do puzzle nunca acabar de ser construído, com Dária a afastar as peças com a mão e a iniciar o processo de sedução da criança negra albina, é sintomático de que a história que está a ser contada também não poderá nunca ser revelada na totalidade, que há espaços em branco que assim continuarão.

A Rosária referiu aquilo a que chamou momentos de lucidez no livro, passagens em que finalmente a história começava a fazer algum sentido e em que parecia que ia tomar um rumo mais bem definido. No entanto, a esses momentos de lucidez sucediam-se necessariamente outros de delírio em que se tornava novamente difícil seguir a linha de raciocínio. A Ana referiu que tudo se tornou mais claro para ela quando se apercebeu que o narrador, Tito, estava constantemente sob o efeito de drogas, havendo assim uma explicação diegética para a forma alucinada de contar.

Foi levantada a questão se a complexidade da obra ao nível da diegese não seria uma forma de colocar o próprio leitor em cheque, se não seria provocatório. Parece ser essa a postura de um certo grupo de escritores que fazem questão de escrever para uma elite. Seria esta também a postura do júri do concurso da APE, ao atribuir o seu prémio de 2003 a “Vermelho”. Associada a esta questão também se referiu o facto da escrita do romance ter sido subsidiada e discutiu-se da legitimidade destes subsídios, como também do subsídio a um filme como o “Branca de Neve”, de João César Monteiro. Tanto eu como a Jennifer defendemos o filme de César Monteiro, de que gostámos bastante. Além disso, a bem da pluralidade e da riqueza da nossa literatura e cinema, não nos pareceu que devessem haver entraves à liberdade dos criadores. Também não nos pareceu mal que fossem escritos livros ou realizados filmes para elites, reconhecendo o direito a existirem produtos para todos os públicos. Tanto mais que os produtos para um público mais generalizado, como livros de autores como Margarida Rebelo Pinto, ou filmes como “Amo-te, Teresa” têm à partida, mais facilidade em serem financiados por meios privados, pois podem gerar mais receitas.

A Rita sugeriu que escrevêssemos um texto a enviar à autora por e-mail com as nossas observações sobre o livro. No entanto, e na medida em que concordámos que seria indelicado enviar um texto muito negativo, tivemos dificuldade em pensar em mais do que uma frase: “Escolhemos o seu livro para discussão num clube de leitura”... Houve ainda um momento perfeitamente hilariante quando nos pusemos a imaginar um texto em que utilizássemos o tipo de construções frásicas que a autora emprega no livro. A Ana saiu-se com algumas frases que levaram o resto do grupo às lágrimas (se te lembrares delas acrescenta, Ana).

No cômputo geral, o livro não recebeu grande aceitação, não proporcionou uma leitura muito agradável a nenhuma das leitoras. No entanto, realçámos a importância de ir conhecendo o trabalho da nova vaga de escritores, pelo que não demos o nosso tempo por desperdiçado.

Depois do ontem tão duramente criticado "Vermelho" (o resumo da discussão está para breve no blogue) foi escolhido por larga maioria como próxima leitura "A Sombra do Vento", de Carlos Ruiz Zafón. Pelas críticas que já li vos digo que promete... Mistério e aventura, um género que ainda estava por incluir na nossa lista. Aqui ficam alguns desses artigos que descobri on-line:


Carlos Ruiz Zafón reivindica en 'La sombra del viento' el retorno a la novela clásica

EUROPA PRESS
El escritor catalán Carlos Ruiz Zafón reivindicó hoy en la presentación de su nueva novela, 'La sombra del viento' (Ed. Planeta), el retorno a la novela clásica y a la vieja usanza, huyendo del tipo de novela "light" que abunda actualmente. Así lo explicó en rueda de prensa este escritor y guionista cinematográfico, que actualmente reside en Los Angeles y que ha publicado anteriormente cuatro novelas de literatura juvenil con gran éxito de ventas. Ruiz Zafón quedó finalista en el Premio Fernando Lara de Novela 2000 con 'La sombra del viento', un relato ambientado en la Barcelona de principios del siglo XX, en el que Daniel descubre la apasionante historia que se esconde detrás de un libro abandonado que su padre le muestra y que cambiará su vida. El autor calificó 'La sombra del viento' como una novela de misterio, de intriga y de aventuras sobre el fondo costumbrista de la Barcelona de los años 50. Además, explicó que el libro incorpora recursos de los que se utilizan habitualmente en el cine con el fin de que el lector se olvide de que está sosteniendo un trozo de papel, y pueda sentir la luz y los sonidos que se esconden en el texto. Carlos Ruiz confesó que, sin ánimo de ser pretencioso, considera que esta es su mejor novela con mucho, y que ha pretendido recrear un universo rico de personajes, de misterio, de aventura y de todo lo bueno que se puede transmitir en un libro.

El autor, que además es guionista de cine, no descartó la idea de trasladar la novela a la gran pantalla, aunque aseguró que la riqueza de un libro no se puede mostrar en un film de ninguna manera. "El guión de cine es como un cubito de avecrem, mientras la novela es el estofado de buey entero", señaló de manera metafórica. Finalmente, Ruiz Zafón reconoció que 'La sombra del viento' es una especie de homenaje a la literatura, ya que es por un libro por lo que el protagonista recupera la imagen de su madre y el sentido de su vida. "Se habla del alma de los libros y el cementerio de libros simboliza la destrucción de la historia y de la memoria que se produce en nuestra sociedad, rendida a los medios audiovisuales y a la cultura comercial", concluyó.

Se comenta por los (ciber) mentideros literarios que "La sombra del viento" fue descartada por los jurados del premio Fernando Lara 2000 pero que uno de los críticos de ese jurado le hizo llegar, casualmente, al propio Lara un ejemplar de "La sombra...".

Se comenta que el señor Lara sugirió que a juzgar por "La sombra del viento" Carlos Ruiz Zafón podría ser presentado como serio candidato al primer premio....
Y claro, los jurados del premio tuvieron a bien la sugerencia de Lara pero se negaron a que Zafón fuese más allá de ser finalista...

Y así fue: ese año se llevó el gato al agua una mujer, Ángeles Caso por su novela "Un largo silencio".

Sin embargo, a día de hoy (tres años después) "La sombra del viento" es todo un fenómeno editorial, uno de los mayores éxitos de ventas a nivel nacional y una de nuestras mejores exportaciones literarias (célebre también el elogio del ministro alemán de Exteriores, Joschka Fischer, en el marco de la Feria del Libro de Francfort).

La pregunta es inevitable:
¿Qué tiene "La sombra del viento" que se ha convertido en imprescindibles para tantísismos lectores?

De entrada es uno de esos libros "raros" que se venden a sí mismos, es decir, que sus ventas no son consecuencia de una promoción milonaria por parte de la editorial (al menos en este caso no durante los dos-tres primeros años) sino que responden a la mejor de las promociones: el boca-oreja de los lectores.

Un amanecer de principios de verano de 1945 Daniel Sempere es conducido por su padre, librero de oficio, al Cementerio de libros Olvidados.
Siguiendo con la tradición de tan peculiar cementerio, el chaval debe adoptar un libro.
Desorientado entre infinidad de volúmenes Daniel acaba responsabilizándose de "La sombra del viento" de un tal Julián Carax. Se lo lleva a casa, se lo lee de un tirón e inmediatamente intenta averiguar más sobre el autor con la intención de leer todo lo que haya escrito...

A partir de aquí Zafón comienza a desgranar toda una trama de intrigas y enigmas que atrapan irremediablemente al lector hasta la última de las quinientas y tantas pàginas casi sin respirar.

La historia (si se pude llamar así) nos pasea por la Barcelonas de Juan Marsé y Eduardo Mendoza, la de la postguerra civil española, por una Barcelona que no acaba de levantar cabeza tras el varapalo de la contienda y aún bajo el control de la conocida "corruptela franquista".

Si me permiten, el corte del libro es casi un guión de cine, ¿a alguien le ha pasado inadvertido que a medida que se avanza en la lectura uno casi se va imagininando la película?

¿Se animarán David Trueba o Mario Camus a llevar el texto a la gran pantalla?
Esperemos que sí.

Pero sigamos.
Si uno consigue parar de leer unos instantes aunque sea para respirar o para ir al "excusado" quizá caiga en la cuenta de que Ruiz Zafón ha echado mano de algunos recursos algo... escabrosamente juveniles. Por ejemplo, magnífico el Cementerio de libros olvidados, pero ¿no parece casi que de buenas a primeras nos va a aparecer (con perdón) un Harry Potter envuelto en su túnica transparente?

Insisto, magnífico el recurso pero quizá excesivamente gótico, romanticoide más que romántico.

De agradecer que se le haya ahorrado la joroba al señor Monfort, vigilante de tan insigne lugar.

El problema (¿el logro?) es que uno no puede dejar de leer, apenas hay respiros para detenerse y reflexionar, para reencajar el puzzle, para cuadrar ideas e impresiones. Tan devotamente se lee que hasta varios días después no se cae en la cuenta de algunos recursos casi facilones de romanticoides e idílicos que son usados por Zafón...

Veamos...

Dos polos: el bien y el mal.

Por supuesto el bien se identifica con Daniel, la principal voz narradora (principal que no única porque estamos ante una auténtica polifonía narrativa), un personaje joven, presumiblemente guapo, fantástica y casi pastelosamente enamorado de una casta (solo al principio) adolescente refinada y etérea que de ningún modo podría dejar de llamarse Beatriz.

Por supuesto el mal se encarna en un personaje ralo, curtido, rencoroso, malhablado... omnipresente y casi casi omnisciente y omnipotente (amén): el policia franquista (sic) señor Javier Fumero.

Y por supuesto, no podía faltar y efectivamente no falta un personaje bisagra, un puente, un contacto entre ambos mundos, una Celestina... sólo que en este caso el amigo Fermín Romero de Torres se sale del perfil y se convierte además de en uno de los pilares del texto (indiscutible), en un personaje entrañable cuyo humor, desfasado a lo castizo, nos enganchará aún más a la hipnótica e insómnica lectura.

De cine (insisto) el desarrollo de un libro dentro de un libro, magnífica base para la espiral de intrigas en la que nos veremos atrapados y que nos mantendrá en vilo, seguro, hasta que, unas páginas antes del final, en la carta de Núria Montfort, hija del vigilante del cementerio, veamos la luz.

Un libro dentro de un libro, una historia dentro de otra, desde "Las mil y una Noches" de Sheretzade hasta "Soldados de Salamina", ¿quien da más?

¿Una historia de amor?
¿Una novela negra?
¿una historia de aventuras?
De todo y más se encuentra en esta novela enorme, completa y correctísimamene ligada, incluso un magnífico y nada disimulado duelo a lo John Wayne algo durillo de leer pero fácilmente imaginable.

Claro, conociendo un par de detalles sobre al vida de Carlos Ruiz Zafón es fácil observar que "La sombra del viento" tiene una clarísisma vocación de guión cinematográfico.. por ejemplo es especialmente curioso el recurso de introducir otras voces que (durante varias páginas) se convierten en narradoras principales.
De buenas a primeras la narración se interrumpe y emergen -en algunas ocasiones no se sabe bien de donde- textos impresos en una tipografía diferente con información fundamental para el desarrollo de la novela... ¿quién no ha interpretado estas incursiones como una voz en off?

A una cierta distancia "La sombra del viento" se ve mejor. Una Barcelona gris, unos personajes que evolucionan (lo que no es nada desdeñable) dentro de sus correspondientes tipologías bueno-malo, una trama de amores etéreos y desamores humanos.. el happy-end no nos lo perdona ni la Madre de calcuta, pero claro... no es cuestión de desvelarlo impúdicamente...

Un libro que casi sin excepción está gustando a todo el mundo y que ha sacado a Zafón de las sombras para plantarlo en medio del altar que todos los editores tienen a la virgen de "Las Ventas"...

¿cuál será su siguiente trabajo?

Ramiro Tomé
info@arquera.com

in Revista de Literatura Pielago.com (www.pielago.com)



Editorial Reviews
From Publishers Weekly
A Barcelona-born novelist based in Los Angeles, Ruiz Zafon was a finalist for the Spanish Fernando Lara de Novela award with this fifth novel. This thriller follows the mysterious disappearance of an author of melodramas, Juli n Carax, and how his book influences the 10-year-old Daniel Sempere. When Daniel visits a mysterious and secret Library of Forgotten Books in 1940s Barcelona and finds Carax's novel The Shadow of the Wind, he becomes obsessed with Carax. For more than a decade, he follows the writer's ghost through a labyrinth of love, sex, violence, friendship, and betrayal. The narration unfolds through an interesting, yet overextended, interplay of overlapping characters and stories. Carax's and Ruiz Zafon's novels blend throughout the story, sometimes misleading the reader but ending in masterfully executed pages. Ruiz Zafon explores the world of antique books, the city of Barcelona, and the animosity inherited from the Spanish Civil War. Some scenes in this thriller also refer to Borges's exploration of libraries, the labyrinth structure, and Arturo P rez-Reverte's study of hypertextuality in works like El club Dumas (The Dumas Club, Suma de Letras, 2000). Although Riuz Zafon uses some complex metaphors to imitate Carax's melodramatic style, his language is mostly clear and accessible to all readers. Recommended for public libraries and bookstores.

Leda Schiavo, Univ. of Illinois, Chicago
Copyright 2002 Reed Business Information, Inc.

domingo, 17 de outubro de 2004

Aqui está um artigo que descobri na net sobre o "Vermelho":

Mafalda Ivo Cruz - Tu, Minha Única Vida!
Por Maria da Conceição Caleiro


Não basta dizer de "Vermelho" que se trata do melhor romance de Mafalda Ivo Cruz, simultaneamente o mais depurado e denso, aquele em que o seu horizonte desde sempre já anunciado se consuma. "Vermelho"é um texto onde linguagem alicerça o seu fulgor que continua para além dele a reverberar, e é talvez um dos mais perfeitos textos da nossa cena literária recente.O narrador fala na primeira pessoa, a um tu, Nina, a mulher, que está grávida: Nina, Bice ( se calhar Beatriz de Dante), a que também é inocente e configura o amor, o nome próprio a quem o próprio amor se dirige, e ainda a Dária, a doce Dária, a mãe, obediente e lânguida que muito amou um menino de 12 anos que lhe traria um filho, o narrador, até à morte daquele, deixado só, o seu menino, o seu amparo; e fala ainda a si próprio num delírio polifónico, numa espiral de vozes que contam a história, retrospectivamente, em convulsão - "A Nina agora. Já não era a Nina. Bice. Era outra".Fala desde o início do mundo, desde a génese da paixão e da morte, de Afonso de Amadeus e da amante negra, do sim e do não inscritos, e denegados, há quatro gerações no Livro de Assentos, no Livro da Criação Tantos enforcados na infância, numa cadeira D. João V onde foi ficando depositado o rastro de vida e morte: o sangue, o sémen, a urina. Os que se desfazem em movimentos que não lhes pertenceram só a eles, mas que duram insepultos, como as almas. Todos com nomes bíblicos: Josias, Josué, José, Ismael, Saul culminam em recorrentes instantes que condensam todas as eras. "E eu, atravessei as eras.(…) E Deus fecundou o damasco, disseste tu.(…) Deus disse; Que se fecundem, que se ataquem, que se devorem.(…)E Deus também disse que tudo morre no fim da sua génese". O narrador grita arrastado num "um vórtice temível de sombras", almas que mesmo assim subsumem todo o livro: "é verdade que às vezes grito. Mas nem sei bem se os meus gritos são audíveis, se são reais. Nem quem grita", nem quem vê em mim o que eu vejo. "Tantos gritam através de mim e morreram calados e já ninguém se lembra deles". "E é verdade que só te tenho a ti embora não saiba em mim quem és tu. Ou se queres a minha morte. Ou se sou eu quem te induz a querer a minha morte. Ou se sou quem te induz através de processos de escuridão. Tu minha única vida".Do delírio polifónico, o texto, das vozes e das visões, dá chaves de leitura, abisma o modo da sua construção, assim como o modo de recepção. Escreve-se: eu vejo, eu sonho, eu imagino: " lá anda ela","vejo, vejo coisas, vejo-as com nitidez", "estou a ver tudo", "vi-te deitada numa cama de palha", "e as imagens sobrepunham-se".E para o fim, a voz parece colher, num sujeito sem sujeito, todas as vozes que fermentavam no seio do sangue, no cio negro da Terra, resgatadas finalmente pela infância sempre por vir."Vermelho" engendra-se num dispositivo de narração assente em cenas inesquecíveis cujos pilares velam e desvelam a história, intensificam-na e esfumam-na; recorrentemente a mesma cena, ou tema, primitivos, que ora se sobrepõem e repetem, musicalmente, ora fazem variar um núcleo que regressa, em movimento perpétuo, balançando-se numa viagem de Inverno entre o inferno e a ascensão, a pureza do cisne, o voo limpo nas águas diáfanas do mar.Como se a cadeia escrita, a linha escrita, fossem mediatizadas pela cena vista que chama outras cenas já vistas, já escritas; as mesmas refundadas que num movimento louco devêm outras. A forma espacial é um lugar de manifestação, e transformação, do sentido. A cena dinamiza-se pela tensão que se instala entre o espaço e o sentido num jogo reiterado de combinações. E uma paisagem torna-se cena através de um olhar que a anima, o do narrador, o da autora que a engendra e que parece nessa modalidade de percepção nela se confundir - "é só uma escuridão que começa a abrir-se e nesse tempo tão curto encontro-te por toda a parte no espaço. E com a minha tesoura corto corto. (…) Perdi a noção do tempo". Alguns exemplos de cenas que marcam o livro e nos marcam: as crianças negras, as crias filhas de Isaura e de outros homens, levadas à forca por vontade de Afonso, "proprietário de almas". "O sadismo aliviava as crises de sadismo do meu avô. Que a Isaura tivesse tido outro amante e aparecesse com uma 'cria' não podia aceitar.(…) Não podia viver sem a Isaura e era uma certeza inconfessável, para ele odiosa, que o feria, o exasperava. E então para resolver aquilo mandava tirar a 'cria'. E a Isaura, de pé, ao lado dele. E a 'cria' oito anos depois, com oito anos de idade. Tinham posto a escada de dois degraus e o cadeirão de damasco debaixo da árvore . E o "Petit Tambour" caiu, morreu". E assim por quatro vezes, a mesma cena a ensombrar, a reacender a narrativa, a disseminar-lhe o sangue e o sémen". Visualmente é como um "crepitar de chamas numa noite de Inverno". Outra cena dura todo o livro, comovida: a do "Petit Tambour", a da criança que adormeceu na cadeira de Napoleão, na retirada da Rússia, em 1812, tanto sangue semeado na neve; e uma criança ausente no sono. E ainda, entre outras: a cena do puzzle, das peças que se fazem e desfazem e refazem noutras, inventadas, num movimento sem fim, tão longe da sua matriz inicial, a promessa sempre diferida. A cena do puzzle é, aliás, emblema de todo o livro. Dária, a mãe, ainda a criada faz ver ao seu menino enclausurado, essa "criança do coração morto", o pai do narrador, o negro albino já quase cego, aquele que morreria de tristeza depois de ela lhe ter sido obedientemente extorquida. Dária dava-lhe a ver as figuras do puzzle, era uma cena de caça: personagens na neve. "a norte, sim, a norte, meu amor. Três homens e um javali morto o sangue a devassar a neve. E uma rapariga vestida de soldado. E o frio.(…) A Dária tirava a mão do peito e aproximava-a das peças do puzzle, lentamente abria a mão. (…) E continuavam os dois a cena de caça e a criança sorria, até que Dária lhe pegava pelos ombros e o deitava no colo dela e lhe fazia festas. (…), e dizia baixo 'meu menino, meu amparo'". E outra vez debruçavam-se sobre a cena de caça. E ela dizia "olha a neve, olha os pinheiros". E ele olhava, olhava, e as peças juntavam-se. As peças. Mas num silêncio tão denso, tão escuro, que o puzzle se tornava numa construção íntima, uma constelação de ansiedades". Era assim, era. "Vês os pássaros a voar?" E ele via. E os pássaros voavam longe, alto, sobre a neve, como num pesadelo. E ele fechava os olhos e acabava por mergulhar no peito da Dária.. Parecia querer dizer coisas como 'Vamos para lá, para a neve, para os pinheiros' mas não dizia. A criança do coração morto já não podia falar e só abria os olhos dificilmente". E ainda outro plano fulgurante, rapidíssimo: a Nina, a que é inocente, o narrador repete-o, numa noite de chuva, numa sessão de cinema ao ar livre, dedicada sobretudo a velhos, em Monsanto, rasga o ecrã com uma pedra que apanha e atira ao rosto de Alexandre Nievsky, uma obra de Eisenstein,. Ao rosto, a esse plano fetiche, emblema de Estaline: o poder carismático. Esse grande plano único, o mal, e depois aliás tudo se alvoraça e uma espécie de revolução nasce, cheia de sangue, um patamar negro que chama. Por último exemplo, último cenário contíguo à pedra lançada à cara de Alexandre Nievsky, algo que trespassa "Vermelho": a imaginação da morte de Nina que imaginariamente também o quereria matar, com venenos - o sangue em espelho a derramar-se, a ir-se só mais tarde lavar no mar, o delírio dentro do delírio, do princípio ao fim, sub-reptício, arcaico, sempre a iminência deste cenário vencido mas reversível "- que é que tem a Nina? - Vai ver. Hesitei. Aproximei-me até ficar junto dela, peguei-lhe nos dois braços, prendi-lhos atrás das costas e de um golpe cerce cortei-lhe a jugular, caiu, lá for a um cão desatou a uivar, o sangue saía-lhe em borbotões do pescoço, ficou caída no chão de olhos abertos e eu só via sangue, sangue. Ajoelhei-me e beijei-a na boca. Agarrei-lhe nos dois braços atrás das costas, a garrafa de água resvalou, caiu no chão, ela não gritou. E de um golpe cerce cortei-lhe a jugular".A campainha em forma de pastorinha que rolou, e caiu da mão do menino do coração morto, a garrafa de água a resvalar e ela não gritou, a pedra lançada para a revolução, e tantos outros filmes sobrepostos."Vermelho" é ancorado em objectos que indiciam: "punctums", pontos de intensidade sublinhada, como nas fotografias, que configuram cenas, pontos de vista no espaço tornado "geometral", objectos que se firmam e assinam um clima que vamos reconhecendo sempre que reaparecem: e reiteram e ao mesmo tempo relançam a cena, acrescentando nesse movimento sempre algo mais ao sentido; e a narrativa ganha velocidade, não cessa de diferir por acumulação de traços mínimos, desmultiplicação de indícios em movimento contínuo, jubilatório, pré-revolucionário. Os objectos: a cadeira, a faca, as meias pretas com uma malha em salto altos, a borboleta de ouro, figura de magia negra, de impostura assim como o quadro de Isaura a veludo verde e cheia de jóias, um quadro falso de Oiseleur figura inventada anos depois por Tito, "com as tuas pernas à volta, e já era meio da tarde e eu fazia-te tranças(…). Assim como fiz retratos teus de todas as maneiras e assinava Oiseleur. Oiseleur e tu rias", e ainda a tal campainha em forma de pastorinha que rolou da mão da criança do coração morto, e caiu.Não podemos esquecer a mestria estilística de "Vermelho", e o modo como essa mesma mestria liricamente derrama o discurso, rodopia, esboça e dissemina o delírio, centra e descentra o núcleo da espiral, controlando-o também a cada andamento, tecendo com ele uma subjectividade a várias vozes, que explora o "emboîtement". Plural num momento, semeando o sangue e os espectros e, depois, por amor, já em paz, se bem que sempre em aberto.Subjectividade que formalmente se inscreve nas frases que alternam cadências maiores e menores, equilibram ritmos, frases que se despedaçam e segmentam, que introduzem rupturas de construção, que deslocam do grupo sintáctico palavras que normalmente dele deveriam fazer parte, ou as isolam, coagulando assim a desmesura, o impoder do pathos aceso.Lemos este livro embalados pela sua própria música, pela cadência que está lá dentro, na sua microfísica, a cada frase, a cada passo e na sua figuração maior, na sua arquitectura - um edifício musical infinitamente relançável estendido até ao mar, prometido na criança que vai nascer.

Mafalda Ivo Cruz
Vermelho
D Quixote
214 pág

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Pois, como terão percebido as mais atentas, este mês estive bastante mais ocupada e não surgiu na devida altura o costumado resumo da discussão do nosso último livro, "A sangue frio" de Truman Capote. Mas como mais vale tarde do que nunca, enchi-me de coragem, puxei da memória de há quase um mês, e dediquei-me hoje a escrever um texto sobre essa dita cuja discussão. Aqui está, necessariamente ensombrada pelo fantasma do esquecimento e, como sempre, aberta a críticas, comentários e acrescentos:

Pela primeira vez no nosso clube de leitura escolhemos um livro que já foi adaptado ao cinema e tivemos hipótese de discutir e comparar os dois registos. O filme foi realizado, por Richard Brooks, em 1967, apenas dois anos após a publicação do livro. Logo às primeiras cenas do filme nos apercebemos da sua qualidade. Para além da excelente fotografia (a preto e branco), agradou-nos a banda sonora de Quincy Jones e as inteligentes passagens entre as cenas. Também o casting nos pareceu bastante bem feito, com os protagonistas a corresponderem exactamente às nossas expectativas após a leitura do livro. De resto, o filme segue escrupulosamente o livro, com apenas uma ou outra novidade no que diz respeito aos diálogos, acrescentando um sentido de humor seco que não se encontrava no livro (também a banda sonora acrescenta um certo estilo às personagens que transcende a crueza documental do livro). Apenas as cenas do tribunal são compactadas, tal como a relação de Perry com o antigo colega do serviço militar. Essa aglutinação foi bem vinda por algumas leitoras que admitiram ter sentido nesse ponto da leitura que a história se arrastava tornando a leitura mais monótona. Outras, como a nossa advogada, talvez por uma questão profissional, tiveram pena de que os aspectos processuais tenham sido omitidos. De facto, esse corte faz com que se dilua no filme a empatia face aos protagonistas devido às evidentes falhas quer da polícia aquando dos interrogatórios, quer da defesa em tribunal, e consequente inevitabilidade da condenação à morte. Concordámos que o filme pouco acrescenta ao livro em termos de argumento, seguindo-o quase à letra, o que, por um lado foi uma surpresa agradável para quem tinha acabado de ler o livro e pode depois apreciar uma “ilustração” do mesmo, mas por outro lado surpreende também pela negativa na medida em que geralmente os filmes baseados em obras literárias apresentam outras leituras, outros pontos de vista, tornando-se independentes do livro que lhes esteve na origem. Em todo o caso, concluímos que, se houve de facto rigor documental na composição do livro, então o próprio filme também se aproxima do género do documentário, pelo que se poderá justificar a ausência de liberdade em termos de argumento.
Passámos em seguida à discussão do livro. A primeira questão levantada prendeu-se com a factibilidade ou ficcionalidade da obra. “A sangue frio” inaugura um género literário, o romance não-ficcional (non fiction novel), apesar de outros autores já terem escrito reportagens em jeito de romances, como John Hersey, Rebecca West, Lilian Ross ou Joseph Mitchel. De acordo com declarações do próprio Truman Capote, o romance constituirá uma reconstituição perfeitamente escrupulosa dos factos. É certo que Capote conviveu intimamente com os assassinos, com os investigadores da polícia e com as outras pessoas envolvidas nos factos durante seis anos. Segundo um artigo que lemos, Capote terá lido uma notícia de jornal sem grande relevo relativa ao crime e terá partido para Holcomb para fazer uma reportagem sobre o pânico que se abateu sobre a pequena comunidade após o crime. Vencida a resistência inicial, nomeadamente de Alvin Dewey, um dos agentes da polícia encarregados da investigação, em dar entrevistas, Capote foi recolhendo um grande volume de depoimentos. A grande viragem deu-se com a prisão dos suspeitos e sua subsequente confissão. O âmbito da reportagem foi assim alargado e o jornalista iniciou um contacto com os assassinos que se manteve até à sua execução, sendo que, a pedido dos condenados, assistiu à mesma. A uma dada altura levantou-se-lhe um problema ético: deveria publicar a sua obra antes ou depois da morte dos condenados? Se por um lado sofreu algumas pressões editoriais para publicar antes, por outro lado sabia que a questão só teria fim após a sua morte. Acabou por esperar pela execução da sentença, após a qual partiu para Nova Iorque, alegadamente bastante combalido com a morte de Dick e Perry, a quem acabou por se afeiçoar, e passados dois anos publicou a obra que lhe trouxe o êxito. Em relação à factibilidade ou ficcionalidade da obra, dificilmente podemos chegar a alguma conclusão pela sua leitura e sem conhecimento dos factos. Por um lado, temos a informação de que a investigação foi exaustiva e que Capote conheceu bem as personagens que descreveu. Por outro lado, considerámos a descrição tão pormenorizada e as personagens tão bem construídas que temos dificuldade em aceitá-las como reais e não como produtos da imaginação do autor. Ou seja, acaba por ser a sua total verosimilhança que as torna ficcionais. Não deixa de ser curioso que a minúcia com que é apresentado o perfil psicológico das personagens possa contribuir para que o leitor as reconheça como ficcionais. Dificilmente alguém conseguiria fazer uma tal reconstituição da mente de outra pessoa real, o que diz algo sobre a complexidade da pessoa humana e a incapacidade inerente que temos em comunicar emoções.
Se é certo que Capote tenha tido oportunidade de entrevistar exaustivamente Dick e Perry e os agentes policiais, no que diz respeito às vítimas do crime, à família Clutter, isso já não é verdade, na medida em que, quando o jornalista chega a Holcomb, o crime já está consumado. E, no entanto, a densidade dessas personagens é tal que, novamente, temos dificuldade em aceitar que não sejam ficção. Estabelecemos uma comparação com as personagens de um dos últimos romances que lemos, “Middlesex”, que sendo ficcional e de acompanhando a biografia das suas personagens ao longo de décadas, não consegue nunca dar a densidade psicológica às personagens como o consegue Truman Capote em “A sangue frio”.
Outra questão que se levantou, e ainda relacionada com a anterior, foi a questão da literariedade da obra. Pode uma peça jornalística ser considerada literatura, por muito bem escrita que esteja? O que define então uma obra literária? E onde se estabelecem os limites? Uma obra literária é, em definição simplista, um texto escrito com reconhecido valor estético. Algumas leitoras manifestaram a opinião de que, apesar da história estar muito bem contada, é simples e sem grandes artifícios em termos de linguagem, e que, como tal, talvez não pudesse ser considerada literatura mas apenas uma boa reportagem. Há que ter em conta, porém, eventuais falhas da tradução em transmitir o ritmo do original em inglês. Por outro lado, a qualidade literária não se reflecte apenas no nível de linguagem, que pode ser bastante simples (e até o é em muita da literatura contemporânea), mas na cadência, na musicalidade ou na eficácia em evocar emoções no leitor. E onde, a meu ver, esta obra se mostra magistral, em termos literários, é na estratégia narrativa que utiliza em termos de focalização. Não temos uma figura de narrador enquanto personagem que interage com as outras personagens, como sabemos que foi o caso do escritor em relação às pessoas retratadas, o que aliás se coaduna com o estilo jornalístico. O que foge completamente ao género jornalístico clássico é a focalização interna da narrativa em várias personagens ao longo do romance. O autor vai-nos apresentando o ponto de vista de cada uma das personagens, começando nas vítimas e passando pela população amedrontada e desconfiada, pelos agentes da polícia e pelos próprios assassinos. E é essa capacidade de se colocar na mente dos vários intervenientes, fazê-lo com total verosimilhança e articular esses fragmentos de vida humana num todo coerente e equilibrado que transforma, a meu ver, este relato em grande literatura.
Ainda no que diz respeito à aproximação à reportagem jornalística e à isenção que pressupõe, torna-se claro desde muito cedo na obra a empatia sentida pelo escritor por Perry Smith, que apesar de ter perpetuado na realidade todos os assassinatos, é apresentado como uma personagem muito mais complexa e humana, para além dos seus antecedentes familiares nos levarem a compreender um pouco melhor os seus actos. Não temos, então, aqui jornalismo isento e objectivo. A questão é se pode existir jornalismo isento e objectivo e se é desejável que assim o seja. As ilusões de que se possa noticiar o que quer que seja sem denotar um ponto de vista já terão acabado. Sabemos que é impossível e o que esperamos é ser confrontados com o maior número de perspectivas possível, para que possamos formular opiniões de forma fundamentada. “A sangue frio”, apesar da preferência nítida por uma personagem em particular, consegue conter em si um diálogo plural entre todas elas. Torna o leitor consciente da perigosidade de formar juízos de valor apressados face aos factos mostrando o lado humano dos psicopatas, mas, por outro lado, não nos deixa esquecer as vítimas dos seus crimes, apresentadas também em toda a sua dimensão humana de sujeitos projectados no futuro e que se vêm, inexplicavelmente, privados deste.
Discutimos ainda aquele que acaba por se destacar como um dos temas principais da obra: a pena de morte. Apesar de todas se manifestarem contra, mais que não seja porque um único caso que seja de condenação de um inocente coloca em causa todo o sistema, acabamos por compreender a hesitação em atribuir uma pena de prisão perpétua num sistema em que, tal como mencionado no livro, passados sete anos os prisioneiros sejam normalmente colocados em liberdade condicional, o que obviamente seria de uma grande injustiça perante crimes com a gravidade deste. Uma maior severidade no cumprimento das penas relativas a crimes de grande violência é talvez a forma de evitar a legitimização da prática da pena de morte.Discutimos ainda os aspectos processuais descritos no livro e a forma como foram negadas aos detidos uma série de direitos, desde a forma como os interrogatórios foram conduzidos, sem a presença de um advogado e recorrendo a grandes pressões psicológicas de forma a obter a confissão dos crimes, até às falhas da defesa em tribunal, que se mostrou amorfa e sem capacidade de denunciar esses atropelos aos direitos dos arguidos. Lembrámo-nos da lista de direitos que é lida na altura das detenções e que ouvimos com frequência nos filmes americanos. A obrigatoriedade da leitura desses direitos terá surgido na sequência de um processo mal conduzido e que levou à abstenção de um réu, português, o Ernesto Miranda, em apelo ao Supremo Tribunal. Desde então, 1966, os agentes da polícia lêem o “Miranda Warning”, que aliás já temos disponível no nosso blogue, no post anterior. Esta data é, no entanto, posterior ao caso de Dick e Perry, pelo que não terão tido conhecimento dos seus direitos.
Em traços gerais foi esta a discussão suscitada pelo livro, bastante profícua, e em que ficou a ideia de que é bastante interessante confrontar os livros com as adaptações ao cinema, quando estas existem.