segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Tal como prometido, e ainda bem dentro do prazo de validade, aqui fica um resumo da discussão de “Vermelho”, de Mafalda Ivo Cruz, como sempre sujeito às vossas críticas, sugestões e acrescentos (venham eles!!):

Pelos comentários que fomos partilhando ao longo do mês durante a leitura percebemos que o livro não estava a ser muito bem aceite pelas leitoras e que a discussão prometia ser arrasadora. E, de facto, assim foi, com quase toda a gente a declarar abertamente ter detestado o livro e tendo mesmo havido uma das leitoras que se recusou a ler mais do que metade do mesmo, por opinar que não valia a pena perder mais tempo com a sua leitura.

Algumas leitoras manifestaram a opinião que a autora não soube contar uma história e que nem sequer escrevia bem. Algumas terminaram só por “obrigação”, mas fizeram uma leitura corrida, sem se deterem muito nos detalhes, e ficaram, se assim se pode dizer, “imunes” ao livro, não lhes ficou muito da leitura. A nossa estreante, a Rosária, admitiu que se sentiu um pouco assustada durante a leitura, a pensar que seria a única que não estava a perceber grande coisa da obra e com receio de chegar à reunião sem muito para dizer sobre ele. Afinal concluiu que até percebeu minimamente o texto e que desorientação foi geral. Algumas pessoas sentiram necessidade de ir fazendo notas, ou uma árvore genealógica, para irem construindo o sentido da narrativa. Foi o meu caso e o da Guida, que mostrámos ao resto do grupo essas anotações.

Apenas a Ana e eu (a Cristina) manifestámos uma opinião mais favorável do livro. A Ana reconheceu que lhe deu um certo gozo a leitura, na medida em que gostou de destrinçar o sentido e ir construindo a sua interpretação da história. Foi uma leitura estimulante pelo seu carácter de desafio. Admitiu, porém, uma tendência para gostar do absurdo, e de textos que reflictam a complexidade da natureza humana. Contou ainda uma peripécia curiosa do seu processo de leitura: ela e a Guida foram lendo a obra a par e passo e apoiando-se na interpretação por SMS. Ora aqui está uma utilização criativa das novas tecnologias ao serviço das antigas! Sugeri que se utilizasse o blogue para essas trocas de ideias ao longo da leitura. Eu, pelas mesmas razões da Ana, também não desgostei do livro, e acrescentei que também não opinava que a autora escrevesse mal, embora me tivesse chocado a desarticulação dos vários registos de linguagem presentes no texto. Coabitam na obra um registo mais culto e mais clássico com outro muito mais baixo, que, apesar de coerente com a condição de toxicodependente a morar numa zona completamente degradada do narrador, não se encaixam minimamente. Dá a sensação que a autora pretendeu dar um tom mais contemporâneo à sua prosa, e apenas conseguiu desvirtuá-la. Estabelecemos uma comparação com a prosa de José Luís Peixoto, que utiliza calão e um registo linguístico por vezes muito afastado do normal na literatura portuguesa, mas que o faz de forma magistral, conferindo ao seu universo muito próprio uma coerência e uma eficácia que o torna fascinante.

A Ana avançou com uma teoria de que haveria vários narradores na história e que uns seriam a reincarnação dos anteriores. De facto, além da figura de Afonso de Amadeu ser referida progressivamente como “avô”, “bisavô” e “trisavô”, a palavra reencarnação surge mencionada pela autora, naquela que é, a meu ver, a mais incompreensível passagem do livro, e precisamente a escolhida para a contracapa: “An dich hab ich gedacht [Pensei em ti]. Numa das minhas encarnações de mulher estava sentada com um livro ao colo, um objecto magnífico, mas não lia.” (p. 74). Não interpretei a polifonia do narrador como tendo algo a ver com reincarnação, mas talvez fosse interessante explorar esta hipótese. Para além deste pequeno trecho para o qual não encontro explicação, excepto talvez tratar-se de uma incursão de prosa poética da própria autora, detectei dois narradores distintos: Tito, o narrador de quase todo o livro, e Dária, que assume a narração por momentos e descreve nomeadamente a sua relação com o pai. Quanto a alguma confusão nos parentescos, com as palavras avô, bisavô ou trisavô a surgirem algo indiscriminadamente, penso que só contribui para salientar qual é, a meu ver, a personagem principal desta obra: o sangue. O sangue que corre nas veias destas personagens e que tem a sua génese na figura patriarcal de Afonso de Amadeu. Tal como no Livro do Génesis, citado constantemente, Deus cria o mundo, os animais e os homens, também esta figura de Afonso se recria a si próprio (é mencionado que o seu nome e posição na ilha do Sal são falsos) e é a génese de uma linhagem. A sua amante, Isaura de Jesus Maria, a figura matriarcal por excelência, referida amiúde como a “alma”, viria, um dia após a morte de D. Afonso, a casa os seus filhos António, Leonardo, Gustavo e Sebastião, com as filhas provenientes dos casamentos de Afonso com as Rosas, Alice, Leonor, Ana Luzia e Gervásia. Por outro lado, as crianças não descendentes de Afonso, frutos de aventuras de Isaura com outros homens, despeitada cada vez que Afonso casava com uma das irmãs Rosas, eram mortas com requintes de malvadez. Afonso deixava as crianças viver até aos sete, oito anos e nessa altura enforcava-os, na presença da mãe. Foi o que aconteceu com Josias, Josué, José, Ismael e Saúl, tudo nomes bíblicos e aquela que é chamada a linhagem dos mortos, da qual Tito afirma, já quase no fim do livro, descender. Discutimos sobre se Isaura teria alguma escolha nesses acontecimentos. Concluímos que sim, que faria parte da sua opção de permanecer ao lado de Afonso o facto de prescindir dos filhos que resultassem de ligações com outros homens. Também salientámos o carácter cruel e repugnante destas cenas.

Relacionámos a formação musical da autora com a própria estrutura do romance, que considerámos bastante análoga a uma partitura musical. As frases são, muitas vezes curtas, a sintaxe não segue em muitos casos, as normas, criando uma cadência e uma musicalidade muito própria. Além disso, há refrões, pequenas notas, que se vão repetindo ao longo do texto. Muitas dessas notas recorrentes vão adquirindo sentido à medida que vão surgindo contextualizadas.

Algumas dessas recorrências são muito curiosas, nomeadamente a referência a um pequeno tocador de tambor. Trata-se de uma pequeno participante nas guerras napoleónicas na Rússia, aquando da retirada, que a dada altura adormece no cadeirão de Napoleão. A atitude mais normal, perante tal desrespeito, seria acordar e punir o pequeno. No entanto, e perante a eminência de uma batalha que muito provavelmente terminaria com a sua morte, o imperador decide deixar dormir o menino com uma simples frase: “Laissez-le”. Diz o texto: “Há qualquer coisa de sentença de morte no acto de conceder mais uma noite. Mais quatro ou cinco horas.” (p. 35). A expressão petit tambour surge repetidamente e atribuída a várias personagens, especialmente o pequeno negro albino e Tito. De facto, várias personagens sentem na pele a ambiguidade do acto aparentemente magnânimo de prolongar a vida: a linhagem dos mortos, os pobres meninos a quem era permitido chegar à idade de sete ou oito anos para depois serem enforcados; José, o menino albino, mantido num cativeiro cruel, a quem é providenciado o prazer físico para depois lhe ser negado, fazendo-o morrer de solidão; ou Tito, o narrador, que vive na suspeita constante de que primeiro Nina, e depois Nina e Lena, o querem envenenar. É a morte que paira sobre as personagens e a crueldade do prolongamento das suas vidas sem sentido.
Alguns objectos adquirem especial importância na narrativa. Entre eles está o cadeirão de D. João V, um dos símbolos de Afonso de Amadeu. É neste cadeirão que se funda a sua linhagem, simbolizada pela mancha de urina, esperma e sangue no tecido de Damasco. Outro objecto é o Livro de Assentos, onde D. Afonso inscreve todos os acontecimentos que dizem respeito à família. É associado ao Livro de Génesis da Bíblia, como o início de tudo, a descrição da criação do mundo. D. Afonso inventa-se e inventa um novo mundo. Podíamos acrescentar que qualquer livro de ficção é um Livro de Génesis, na medida em que cria o seu próprio mundo e qualquer escritor é Deus e Senhor dos seus mundos inventados. O puzzle é, a nosso ver, um dos objectos chave para a compreensão do texto. Para além da relevância da própria cena que compõe o puzzle (uma cena de caça, sangue, uma figura feminina algo desenquadrada na imagem), o próprio movimento de construção do puzzle, com as peças a encaixarem progressivamente, é análogo à forma como o romance está construído, com as informações sobre as personagens e suas histórias a surgirem a pouco e pouco. Também o facto do puzzle nunca acabar de ser construído, com Dária a afastar as peças com a mão e a iniciar o processo de sedução da criança negra albina, é sintomático de que a história que está a ser contada também não poderá nunca ser revelada na totalidade, que há espaços em branco que assim continuarão.

A Rosária referiu aquilo a que chamou momentos de lucidez no livro, passagens em que finalmente a história começava a fazer algum sentido e em que parecia que ia tomar um rumo mais bem definido. No entanto, a esses momentos de lucidez sucediam-se necessariamente outros de delírio em que se tornava novamente difícil seguir a linha de raciocínio. A Ana referiu que tudo se tornou mais claro para ela quando se apercebeu que o narrador, Tito, estava constantemente sob o efeito de drogas, havendo assim uma explicação diegética para a forma alucinada de contar.

Foi levantada a questão se a complexidade da obra ao nível da diegese não seria uma forma de colocar o próprio leitor em cheque, se não seria provocatório. Parece ser essa a postura de um certo grupo de escritores que fazem questão de escrever para uma elite. Seria esta também a postura do júri do concurso da APE, ao atribuir o seu prémio de 2003 a “Vermelho”. Associada a esta questão também se referiu o facto da escrita do romance ter sido subsidiada e discutiu-se da legitimidade destes subsídios, como também do subsídio a um filme como o “Branca de Neve”, de João César Monteiro. Tanto eu como a Jennifer defendemos o filme de César Monteiro, de que gostámos bastante. Além disso, a bem da pluralidade e da riqueza da nossa literatura e cinema, não nos pareceu que devessem haver entraves à liberdade dos criadores. Também não nos pareceu mal que fossem escritos livros ou realizados filmes para elites, reconhecendo o direito a existirem produtos para todos os públicos. Tanto mais que os produtos para um público mais generalizado, como livros de autores como Margarida Rebelo Pinto, ou filmes como “Amo-te, Teresa” têm à partida, mais facilidade em serem financiados por meios privados, pois podem gerar mais receitas.

A Rita sugeriu que escrevêssemos um texto a enviar à autora por e-mail com as nossas observações sobre o livro. No entanto, e na medida em que concordámos que seria indelicado enviar um texto muito negativo, tivemos dificuldade em pensar em mais do que uma frase: “Escolhemos o seu livro para discussão num clube de leitura”... Houve ainda um momento perfeitamente hilariante quando nos pusemos a imaginar um texto em que utilizássemos o tipo de construções frásicas que a autora emprega no livro. A Ana saiu-se com algumas frases que levaram o resto do grupo às lágrimas (se te lembrares delas acrescenta, Ana).

No cômputo geral, o livro não recebeu grande aceitação, não proporcionou uma leitura muito agradável a nenhuma das leitoras. No entanto, realçámos a importância de ir conhecendo o trabalho da nova vaga de escritores, pelo que não demos o nosso tempo por desperdiçado.

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