Aqui está um artigo que descobri na net sobre o "Vermelho":
Mafalda Ivo Cruz - Tu, Minha Única Vida!
Por Maria da Conceição Caleiro
Não basta dizer de "Vermelho" que se trata do melhor romance de Mafalda Ivo Cruz, simultaneamente o mais depurado e denso, aquele em que o seu horizonte desde sempre já anunciado se consuma. "Vermelho"é um texto onde linguagem alicerça o seu fulgor que continua para além dele a reverberar, e é talvez um dos mais perfeitos textos da nossa cena literária recente.O narrador fala na primeira pessoa, a um tu, Nina, a mulher, que está grávida: Nina, Bice ( se calhar Beatriz de Dante), a que também é inocente e configura o amor, o nome próprio a quem o próprio amor se dirige, e ainda a Dária, a doce Dária, a mãe, obediente e lânguida que muito amou um menino de 12 anos que lhe traria um filho, o narrador, até à morte daquele, deixado só, o seu menino, o seu amparo; e fala ainda a si próprio num delírio polifónico, numa espiral de vozes que contam a história, retrospectivamente, em convulsão - "A Nina agora. Já não era a Nina. Bice. Era outra".Fala desde o início do mundo, desde a génese da paixão e da morte, de Afonso de Amadeus e da amante negra, do sim e do não inscritos, e denegados, há quatro gerações no Livro de Assentos, no Livro da Criação Tantos enforcados na infância, numa cadeira D. João V onde foi ficando depositado o rastro de vida e morte: o sangue, o sémen, a urina. Os que se desfazem em movimentos que não lhes pertenceram só a eles, mas que duram insepultos, como as almas. Todos com nomes bíblicos: Josias, Josué, José, Ismael, Saul culminam em recorrentes instantes que condensam todas as eras. "E eu, atravessei as eras.(…) E Deus fecundou o damasco, disseste tu.(…) Deus disse; Que se fecundem, que se ataquem, que se devorem.(…)E Deus também disse que tudo morre no fim da sua génese". O narrador grita arrastado num "um vórtice temível de sombras", almas que mesmo assim subsumem todo o livro: "é verdade que às vezes grito. Mas nem sei bem se os meus gritos são audíveis, se são reais. Nem quem grita", nem quem vê em mim o que eu vejo. "Tantos gritam através de mim e morreram calados e já ninguém se lembra deles". "E é verdade que só te tenho a ti embora não saiba em mim quem és tu. Ou se queres a minha morte. Ou se sou eu quem te induz a querer a minha morte. Ou se sou quem te induz através de processos de escuridão. Tu minha única vida".Do delírio polifónico, o texto, das vozes e das visões, dá chaves de leitura, abisma o modo da sua construção, assim como o modo de recepção. Escreve-se: eu vejo, eu sonho, eu imagino: " lá anda ela","vejo, vejo coisas, vejo-as com nitidez", "estou a ver tudo", "vi-te deitada numa cama de palha", "e as imagens sobrepunham-se".E para o fim, a voz parece colher, num sujeito sem sujeito, todas as vozes que fermentavam no seio do sangue, no cio negro da Terra, resgatadas finalmente pela infância sempre por vir."Vermelho" engendra-se num dispositivo de narração assente em cenas inesquecíveis cujos pilares velam e desvelam a história, intensificam-na e esfumam-na; recorrentemente a mesma cena, ou tema, primitivos, que ora se sobrepõem e repetem, musicalmente, ora fazem variar um núcleo que regressa, em movimento perpétuo, balançando-se numa viagem de Inverno entre o inferno e a ascensão, a pureza do cisne, o voo limpo nas águas diáfanas do mar.Como se a cadeia escrita, a linha escrita, fossem mediatizadas pela cena vista que chama outras cenas já vistas, já escritas; as mesmas refundadas que num movimento louco devêm outras. A forma espacial é um lugar de manifestação, e transformação, do sentido. A cena dinamiza-se pela tensão que se instala entre o espaço e o sentido num jogo reiterado de combinações. E uma paisagem torna-se cena através de um olhar que a anima, o do narrador, o da autora que a engendra e que parece nessa modalidade de percepção nela se confundir - "é só uma escuridão que começa a abrir-se e nesse tempo tão curto encontro-te por toda a parte no espaço. E com a minha tesoura corto corto. (…) Perdi a noção do tempo". Alguns exemplos de cenas que marcam o livro e nos marcam: as crianças negras, as crias filhas de Isaura e de outros homens, levadas à forca por vontade de Afonso, "proprietário de almas". "O sadismo aliviava as crises de sadismo do meu avô. Que a Isaura tivesse tido outro amante e aparecesse com uma 'cria' não podia aceitar.(…) Não podia viver sem a Isaura e era uma certeza inconfessável, para ele odiosa, que o feria, o exasperava. E então para resolver aquilo mandava tirar a 'cria'. E a Isaura, de pé, ao lado dele. E a 'cria' oito anos depois, com oito anos de idade. Tinham posto a escada de dois degraus e o cadeirão de damasco debaixo da árvore . E o "Petit Tambour" caiu, morreu". E assim por quatro vezes, a mesma cena a ensombrar, a reacender a narrativa, a disseminar-lhe o sangue e o sémen". Visualmente é como um "crepitar de chamas numa noite de Inverno". Outra cena dura todo o livro, comovida: a do "Petit Tambour", a da criança que adormeceu na cadeira de Napoleão, na retirada da Rússia, em 1812, tanto sangue semeado na neve; e uma criança ausente no sono. E ainda, entre outras: a cena do puzzle, das peças que se fazem e desfazem e refazem noutras, inventadas, num movimento sem fim, tão longe da sua matriz inicial, a promessa sempre diferida. A cena do puzzle é, aliás, emblema de todo o livro. Dária, a mãe, ainda a criada faz ver ao seu menino enclausurado, essa "criança do coração morto", o pai do narrador, o negro albino já quase cego, aquele que morreria de tristeza depois de ela lhe ter sido obedientemente extorquida. Dária dava-lhe a ver as figuras do puzzle, era uma cena de caça: personagens na neve. "a norte, sim, a norte, meu amor. Três homens e um javali morto o sangue a devassar a neve. E uma rapariga vestida de soldado. E o frio.(…) A Dária tirava a mão do peito e aproximava-a das peças do puzzle, lentamente abria a mão. (…) E continuavam os dois a cena de caça e a criança sorria, até que Dária lhe pegava pelos ombros e o deitava no colo dela e lhe fazia festas. (…), e dizia baixo 'meu menino, meu amparo'". E outra vez debruçavam-se sobre a cena de caça. E ela dizia "olha a neve, olha os pinheiros". E ele olhava, olhava, e as peças juntavam-se. As peças. Mas num silêncio tão denso, tão escuro, que o puzzle se tornava numa construção íntima, uma constelação de ansiedades". Era assim, era. "Vês os pássaros a voar?" E ele via. E os pássaros voavam longe, alto, sobre a neve, como num pesadelo. E ele fechava os olhos e acabava por mergulhar no peito da Dária.. Parecia querer dizer coisas como 'Vamos para lá, para a neve, para os pinheiros' mas não dizia. A criança do coração morto já não podia falar e só abria os olhos dificilmente". E ainda outro plano fulgurante, rapidíssimo: a Nina, a que é inocente, o narrador repete-o, numa noite de chuva, numa sessão de cinema ao ar livre, dedicada sobretudo a velhos, em Monsanto, rasga o ecrã com uma pedra que apanha e atira ao rosto de Alexandre Nievsky, uma obra de Eisenstein,. Ao rosto, a esse plano fetiche, emblema de Estaline: o poder carismático. Esse grande plano único, o mal, e depois aliás tudo se alvoraça e uma espécie de revolução nasce, cheia de sangue, um patamar negro que chama. Por último exemplo, último cenário contíguo à pedra lançada à cara de Alexandre Nievsky, algo que trespassa "Vermelho": a imaginação da morte de Nina que imaginariamente também o quereria matar, com venenos - o sangue em espelho a derramar-se, a ir-se só mais tarde lavar no mar, o delírio dentro do delírio, do princípio ao fim, sub-reptício, arcaico, sempre a iminência deste cenário vencido mas reversível "- que é que tem a Nina? - Vai ver. Hesitei. Aproximei-me até ficar junto dela, peguei-lhe nos dois braços, prendi-lhos atrás das costas e de um golpe cerce cortei-lhe a jugular, caiu, lá for a um cão desatou a uivar, o sangue saía-lhe em borbotões do pescoço, ficou caída no chão de olhos abertos e eu só via sangue, sangue. Ajoelhei-me e beijei-a na boca. Agarrei-lhe nos dois braços atrás das costas, a garrafa de água resvalou, caiu no chão, ela não gritou. E de um golpe cerce cortei-lhe a jugular".A campainha em forma de pastorinha que rolou, e caiu da mão do menino do coração morto, a garrafa de água a resvalar e ela não gritou, a pedra lançada para a revolução, e tantos outros filmes sobrepostos."Vermelho" é ancorado em objectos que indiciam: "punctums", pontos de intensidade sublinhada, como nas fotografias, que configuram cenas, pontos de vista no espaço tornado "geometral", objectos que se firmam e assinam um clima que vamos reconhecendo sempre que reaparecem: e reiteram e ao mesmo tempo relançam a cena, acrescentando nesse movimento sempre algo mais ao sentido; e a narrativa ganha velocidade, não cessa de diferir por acumulação de traços mínimos, desmultiplicação de indícios em movimento contínuo, jubilatório, pré-revolucionário. Os objectos: a cadeira, a faca, as meias pretas com uma malha em salto altos, a borboleta de ouro, figura de magia negra, de impostura assim como o quadro de Isaura a veludo verde e cheia de jóias, um quadro falso de Oiseleur figura inventada anos depois por Tito, "com as tuas pernas à volta, e já era meio da tarde e eu fazia-te tranças(…). Assim como fiz retratos teus de todas as maneiras e assinava Oiseleur. Oiseleur e tu rias", e ainda a tal campainha em forma de pastorinha que rolou da mão da criança do coração morto, e caiu.Não podemos esquecer a mestria estilística de "Vermelho", e o modo como essa mesma mestria liricamente derrama o discurso, rodopia, esboça e dissemina o delírio, centra e descentra o núcleo da espiral, controlando-o também a cada andamento, tecendo com ele uma subjectividade a várias vozes, que explora o "emboîtement". Plural num momento, semeando o sangue e os espectros e, depois, por amor, já em paz, se bem que sempre em aberto.Subjectividade que formalmente se inscreve nas frases que alternam cadências maiores e menores, equilibram ritmos, frases que se despedaçam e segmentam, que introduzem rupturas de construção, que deslocam do grupo sintáctico palavras que normalmente dele deveriam fazer parte, ou as isolam, coagulando assim a desmesura, o impoder do pathos aceso.Lemos este livro embalados pela sua própria música, pela cadência que está lá dentro, na sua microfísica, a cada frase, a cada passo e na sua figuração maior, na sua arquitectura - um edifício musical infinitamente relançável estendido até ao mar, prometido na criança que vai nascer.
Mafalda Ivo Cruz
Vermelho
D Quixote
214 pág
domingo, 17 de outubro de 2004
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