quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Pois, como terão percebido as mais atentas, este mês estive bastante mais ocupada e não surgiu na devida altura o costumado resumo da discussão do nosso último livro, "A sangue frio" de Truman Capote. Mas como mais vale tarde do que nunca, enchi-me de coragem, puxei da memória de há quase um mês, e dediquei-me hoje a escrever um texto sobre essa dita cuja discussão. Aqui está, necessariamente ensombrada pelo fantasma do esquecimento e, como sempre, aberta a críticas, comentários e acrescentos:

Pela primeira vez no nosso clube de leitura escolhemos um livro que já foi adaptado ao cinema e tivemos hipótese de discutir e comparar os dois registos. O filme foi realizado, por Richard Brooks, em 1967, apenas dois anos após a publicação do livro. Logo às primeiras cenas do filme nos apercebemos da sua qualidade. Para além da excelente fotografia (a preto e branco), agradou-nos a banda sonora de Quincy Jones e as inteligentes passagens entre as cenas. Também o casting nos pareceu bastante bem feito, com os protagonistas a corresponderem exactamente às nossas expectativas após a leitura do livro. De resto, o filme segue escrupulosamente o livro, com apenas uma ou outra novidade no que diz respeito aos diálogos, acrescentando um sentido de humor seco que não se encontrava no livro (também a banda sonora acrescenta um certo estilo às personagens que transcende a crueza documental do livro). Apenas as cenas do tribunal são compactadas, tal como a relação de Perry com o antigo colega do serviço militar. Essa aglutinação foi bem vinda por algumas leitoras que admitiram ter sentido nesse ponto da leitura que a história se arrastava tornando a leitura mais monótona. Outras, como a nossa advogada, talvez por uma questão profissional, tiveram pena de que os aspectos processuais tenham sido omitidos. De facto, esse corte faz com que se dilua no filme a empatia face aos protagonistas devido às evidentes falhas quer da polícia aquando dos interrogatórios, quer da defesa em tribunal, e consequente inevitabilidade da condenação à morte. Concordámos que o filme pouco acrescenta ao livro em termos de argumento, seguindo-o quase à letra, o que, por um lado foi uma surpresa agradável para quem tinha acabado de ler o livro e pode depois apreciar uma “ilustração” do mesmo, mas por outro lado surpreende também pela negativa na medida em que geralmente os filmes baseados em obras literárias apresentam outras leituras, outros pontos de vista, tornando-se independentes do livro que lhes esteve na origem. Em todo o caso, concluímos que, se houve de facto rigor documental na composição do livro, então o próprio filme também se aproxima do género do documentário, pelo que se poderá justificar a ausência de liberdade em termos de argumento.
Passámos em seguida à discussão do livro. A primeira questão levantada prendeu-se com a factibilidade ou ficcionalidade da obra. “A sangue frio” inaugura um género literário, o romance não-ficcional (non fiction novel), apesar de outros autores já terem escrito reportagens em jeito de romances, como John Hersey, Rebecca West, Lilian Ross ou Joseph Mitchel. De acordo com declarações do próprio Truman Capote, o romance constituirá uma reconstituição perfeitamente escrupulosa dos factos. É certo que Capote conviveu intimamente com os assassinos, com os investigadores da polícia e com as outras pessoas envolvidas nos factos durante seis anos. Segundo um artigo que lemos, Capote terá lido uma notícia de jornal sem grande relevo relativa ao crime e terá partido para Holcomb para fazer uma reportagem sobre o pânico que se abateu sobre a pequena comunidade após o crime. Vencida a resistência inicial, nomeadamente de Alvin Dewey, um dos agentes da polícia encarregados da investigação, em dar entrevistas, Capote foi recolhendo um grande volume de depoimentos. A grande viragem deu-se com a prisão dos suspeitos e sua subsequente confissão. O âmbito da reportagem foi assim alargado e o jornalista iniciou um contacto com os assassinos que se manteve até à sua execução, sendo que, a pedido dos condenados, assistiu à mesma. A uma dada altura levantou-se-lhe um problema ético: deveria publicar a sua obra antes ou depois da morte dos condenados? Se por um lado sofreu algumas pressões editoriais para publicar antes, por outro lado sabia que a questão só teria fim após a sua morte. Acabou por esperar pela execução da sentença, após a qual partiu para Nova Iorque, alegadamente bastante combalido com a morte de Dick e Perry, a quem acabou por se afeiçoar, e passados dois anos publicou a obra que lhe trouxe o êxito. Em relação à factibilidade ou ficcionalidade da obra, dificilmente podemos chegar a alguma conclusão pela sua leitura e sem conhecimento dos factos. Por um lado, temos a informação de que a investigação foi exaustiva e que Capote conheceu bem as personagens que descreveu. Por outro lado, considerámos a descrição tão pormenorizada e as personagens tão bem construídas que temos dificuldade em aceitá-las como reais e não como produtos da imaginação do autor. Ou seja, acaba por ser a sua total verosimilhança que as torna ficcionais. Não deixa de ser curioso que a minúcia com que é apresentado o perfil psicológico das personagens possa contribuir para que o leitor as reconheça como ficcionais. Dificilmente alguém conseguiria fazer uma tal reconstituição da mente de outra pessoa real, o que diz algo sobre a complexidade da pessoa humana e a incapacidade inerente que temos em comunicar emoções.
Se é certo que Capote tenha tido oportunidade de entrevistar exaustivamente Dick e Perry e os agentes policiais, no que diz respeito às vítimas do crime, à família Clutter, isso já não é verdade, na medida em que, quando o jornalista chega a Holcomb, o crime já está consumado. E, no entanto, a densidade dessas personagens é tal que, novamente, temos dificuldade em aceitar que não sejam ficção. Estabelecemos uma comparação com as personagens de um dos últimos romances que lemos, “Middlesex”, que sendo ficcional e de acompanhando a biografia das suas personagens ao longo de décadas, não consegue nunca dar a densidade psicológica às personagens como o consegue Truman Capote em “A sangue frio”.
Outra questão que se levantou, e ainda relacionada com a anterior, foi a questão da literariedade da obra. Pode uma peça jornalística ser considerada literatura, por muito bem escrita que esteja? O que define então uma obra literária? E onde se estabelecem os limites? Uma obra literária é, em definição simplista, um texto escrito com reconhecido valor estético. Algumas leitoras manifestaram a opinião de que, apesar da história estar muito bem contada, é simples e sem grandes artifícios em termos de linguagem, e que, como tal, talvez não pudesse ser considerada literatura mas apenas uma boa reportagem. Há que ter em conta, porém, eventuais falhas da tradução em transmitir o ritmo do original em inglês. Por outro lado, a qualidade literária não se reflecte apenas no nível de linguagem, que pode ser bastante simples (e até o é em muita da literatura contemporânea), mas na cadência, na musicalidade ou na eficácia em evocar emoções no leitor. E onde, a meu ver, esta obra se mostra magistral, em termos literários, é na estratégia narrativa que utiliza em termos de focalização. Não temos uma figura de narrador enquanto personagem que interage com as outras personagens, como sabemos que foi o caso do escritor em relação às pessoas retratadas, o que aliás se coaduna com o estilo jornalístico. O que foge completamente ao género jornalístico clássico é a focalização interna da narrativa em várias personagens ao longo do romance. O autor vai-nos apresentando o ponto de vista de cada uma das personagens, começando nas vítimas e passando pela população amedrontada e desconfiada, pelos agentes da polícia e pelos próprios assassinos. E é essa capacidade de se colocar na mente dos vários intervenientes, fazê-lo com total verosimilhança e articular esses fragmentos de vida humana num todo coerente e equilibrado que transforma, a meu ver, este relato em grande literatura.
Ainda no que diz respeito à aproximação à reportagem jornalística e à isenção que pressupõe, torna-se claro desde muito cedo na obra a empatia sentida pelo escritor por Perry Smith, que apesar de ter perpetuado na realidade todos os assassinatos, é apresentado como uma personagem muito mais complexa e humana, para além dos seus antecedentes familiares nos levarem a compreender um pouco melhor os seus actos. Não temos, então, aqui jornalismo isento e objectivo. A questão é se pode existir jornalismo isento e objectivo e se é desejável que assim o seja. As ilusões de que se possa noticiar o que quer que seja sem denotar um ponto de vista já terão acabado. Sabemos que é impossível e o que esperamos é ser confrontados com o maior número de perspectivas possível, para que possamos formular opiniões de forma fundamentada. “A sangue frio”, apesar da preferência nítida por uma personagem em particular, consegue conter em si um diálogo plural entre todas elas. Torna o leitor consciente da perigosidade de formar juízos de valor apressados face aos factos mostrando o lado humano dos psicopatas, mas, por outro lado, não nos deixa esquecer as vítimas dos seus crimes, apresentadas também em toda a sua dimensão humana de sujeitos projectados no futuro e que se vêm, inexplicavelmente, privados deste.
Discutimos ainda aquele que acaba por se destacar como um dos temas principais da obra: a pena de morte. Apesar de todas se manifestarem contra, mais que não seja porque um único caso que seja de condenação de um inocente coloca em causa todo o sistema, acabamos por compreender a hesitação em atribuir uma pena de prisão perpétua num sistema em que, tal como mencionado no livro, passados sete anos os prisioneiros sejam normalmente colocados em liberdade condicional, o que obviamente seria de uma grande injustiça perante crimes com a gravidade deste. Uma maior severidade no cumprimento das penas relativas a crimes de grande violência é talvez a forma de evitar a legitimização da prática da pena de morte.Discutimos ainda os aspectos processuais descritos no livro e a forma como foram negadas aos detidos uma série de direitos, desde a forma como os interrogatórios foram conduzidos, sem a presença de um advogado e recorrendo a grandes pressões psicológicas de forma a obter a confissão dos crimes, até às falhas da defesa em tribunal, que se mostrou amorfa e sem capacidade de denunciar esses atropelos aos direitos dos arguidos. Lembrámo-nos da lista de direitos que é lida na altura das detenções e que ouvimos com frequência nos filmes americanos. A obrigatoriedade da leitura desses direitos terá surgido na sequência de um processo mal conduzido e que levou à abstenção de um réu, português, o Ernesto Miranda, em apelo ao Supremo Tribunal. Desde então, 1966, os agentes da polícia lêem o “Miranda Warning”, que aliás já temos disponível no nosso blogue, no post anterior. Esta data é, no entanto, posterior ao caso de Dick e Perry, pelo que não terão tido conhecimento dos seus direitos.
Em traços gerais foi esta a discussão suscitada pelo livro, bastante profícua, e em que ficou a ideia de que é bastante interessante confrontar os livros com as adaptações ao cinema, quando estas existem.

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