Aqui fica um artigo que saiu no Mil Folhas de hoje sobre “A Noite do Oráculo”, de Paul Auster
Romance-ratoeira
Sábado, 15 de Janeiro de 2005
Luís Maio
Quando "A Noite do Oráculo" acaba, o narrador é um homem destroçado, a sua mulher foi espancada brutalmente, o seu melhor amigo morreu de embolia pulmonar e o filho deste foi assassinado. Não há final feliz, nenhuma espécie de catarse, o que seguramente contribui para o amargo de boca, indisfarçável quando se fecha o livro. "A Noite do Oráculo" é um romance complexo, artificioso e exemplarmente bem escrito, mas que se furta a cativar o leitor. Um mal-estar que está longe de se reduzir à ausência de redenção final.
Uma explicação para os desenvolvimentos trágicos que fecham o enredo é, porém, facultada na véspera do seu desenlace. Começa na invocação de um respeitado escritor francês que, nos anos 50, publicou um longo poema narrativo girando em torno da morte por afogamento de uma criança. Um par de meses após a edição, a filha desse mesmo escritor afogou-se no canal da Mancha e ele resolveu não voltar a escrever uma linha, ciente de que a sua tragédia ficcional desencadeara a tragédia real. Uma história que, articulada com o próprio drama do narrador, leva-o a concluir que "por vezes sabemos que determinadas coisas vão acontecer antes de realmente acontecerem, ainda que não saibamos que sabemos".
Esta crença especulativa na capacidade de prever o futuro, em particular no carácter premonitório da ficção, constitui uma segura novidade no mundo segundo Paul Auster. É uma defesa do pensamento mágico que entra em choque declarado com a noção de que o acaso e o acidente governam o mundo, tese familiar no seu corpo de obras, de resto, por diversas vezes recorrente neste novo romance. Mas a defesa do premonitório, por mais surpreendente que se revele, não é chave de coisa alguma, como não são os fatídicos acontecimentos que supostamente legitima. São apenas mais portas que se abrem no labirinto narrativo que Auster vai tecendo ao longo de "A Noite do Oráculo", outro "tour de force" do seu insólito pós-modernismo.
A paixão do inconclusivo
Sidney Orr, um romancista de 34 anos de idade, residente em Brooklyn, sai do hospital na sequência de uma doença quase fatal e está lentamente a recuperar a saúde física, ao mesmo tempo que procura reconquistar a inspiração literária. Assim arranca a narrativa, dentro de uma certa normalidade, uma vez que nunca sabemos de que doença padeceu o escritor, nem o que o leva agora a recapitular os acontecimentos relatados, ocorridos em 1982. Que se começam a desenhar na sequência da compra de um bloco de notas azul, que reflecte uma espécie de luz sobrenatural (é a primeira mistificação) capaz de subtrair o escritor à apatia, lançando-o num estado de febril criatividade.
A sua inspiração é um pequeno episódio relatado em "O Falcão de Malta", de Dashiell Hammett: um homem escapa por milagre a ser esmagado por uma viga, compreende que a luz do mundo é o acaso e abandona tudo para começar vida nova. O seu duplo, inventado por Orr, chama-se Nick Bowen e é um editor literário nova-iorquino que vive uma experiência traumática semelhante, que também o leva a desaparecer sem deixar rasto, partindo ao calhas para a cidade do Kansas. Leva apenas na bagagem um original da escritora Sylvia Maxwell chamado "A Noite do Oráculo", sobre um soldado inglês chamado Lemuel Flagg, que perde a visão na I Guerra Mundial, mas em compensação ganha o dom da profecia.
Os vários enredos correm em paralelo, até a história de Lemuel desaparecer inexplicavelmente do mapa e Bowen passar a ocupar o centro das atenções. Pelo menos até Orr o colocar numa situação semelhante a ser enterrado vivo e ficar num beco sem saída em termos narrativos. É aí que os acontecimentos na vida privada do narrador saltam para primeiro plano, ganhando em estranheza e dramatismo. Há uma relação, ou melhor, um feixe de conexões possíveis entre estes patamares narrativos, que por vezes se prendem com a capacidade premonitória do tempo, por vezes com acasos e coincidências, por vezes ainda com outros fantasmas e inquietações típicas de Auster, como o Holocausto e o medo de quartos fechados. Que, aliás, se entrelaçam noutras histórias secundárias - e se há personagens capazes de adivinhar o futuro, há também aquelas que conseguem mergulhar no passado, e mesmo a coincidência dos dois saltos temporais no argumento cinematográfico que Orr improvisa na base de "A Máquina do Tempo", de H. G. Wells.
O que importa, no entanto, é estas narrativas nunca serem conclusivas, sugerindo que o propósito de "A Noite do Oráculo" não é tanto contar esta ou aquela história, mas usá-las para pôr em questão as convenções de leitura. Trata-se para Auster de subverter essa codificação, sobretudo a crença afectiva que classicamente se associa ao romance, baralhando por completo as contas ao leitor. "A Noite do Oráculo" é a esse título o epítome do romance-armadilha, o menos chandleriano de Auster, porque não há "thriller", e o mais borgiano, porque tudo se resume a um arrasador quebra-cabeças. O leitor entra numa narrativa e a meio já mergulhou noutra, só para deslizar para uma terceira e assim sucessivamente. Para complicar ainda mais as coisas, cada relato é acompanhado por longas notas de rodapé, que muitas vezes incluem informação mais essencial que o próprio texto principal, que, quando se retoma, dificilmente se recorda onde ia. Mas também há pistas falsas com algum requinte de malvadez, como as fotocópias verdadeiras de listas telefónicas de Varsóvia de 1937/38, que se diria confirmarem a genealogia de personagens fictícias.
O leitor esforça-se para seguir o fio à meada, mas nesta vertigem de pistas equívocas acabará por se perder e este é o género de romance que se lê uma segunda vez... só para se ficar ainda mais baralhado. Frustrante, sem dúvida, mas nem por isso menos fascinante. Um "puzzle" sem solução, ainda mais retorcido se se pensar que "A Noite do Oráculo" está repleto de pormenores autobiográficos - o miúdo drogado que acaba baleado tem óbvia inspiração no filho de Auster, associado ao assassínio de Andre "Angel" Melendez - ou que há um indisfarçável ar de família com personagens do romance mais recente da sua esposa Siri Hustvedt. Ou ainda que "A Noite do Oráculo" repercute em muitos aspectos a sinfonia dissonante do "Livro da Memória", o segundo de "Invenção da Solidão", escrito um quarto de século atrás e agora reeditado entre nós.
"Portugal É Perfeito"
Sábado, 15 de Janeiro de 2005
L.M.
É graças à compra de um bloco de notas de azul, que o protagonista de "A Noite do Oráculo" recupera o ânimo e a capacidade de escrita. O caderno é de fabrico português e quando lhe pega pela primeira vez, numa pequena papelaria de Brooklyn, Orr sente uma súbita e incompreensível irrupção de bem-estar: "Os cadernos portugueses exerciam sobre mim um fascínio muito especial e eu sabia que não resistiria àquelas capas duras, àquelas linhas quadriculadas, àqueles cadernos costurados de papel robusto, sólido, imune a todo o tipo da borrões." O caderno português irá funcionar como um fetiche, ao mesmo tempo mágico e inquietante da sua escrita, ao ponto que acabará por destruí-lo. Por coincidência ou talvez não, as últimas linhas que escreve nesse caderno respeitam acontecimentos dramáticos, envolvendo a sua mulher, o seu melhor amigo e o filho dele, que ocorreram ou ele imagina que ocorreram numa pequena casa de férias, no litoral Norte de Portugal.
O nosso país tem o privilégio de uma terceira e mais demorada menção em "A Noite do Oráculo". Numa altura em que e a sua carreira literária caiu num impasse e está completamente nas lonas, Orr vê a luz ao fundo do túnel chegar de Portugal. Informado pela agente do interesse de editores portugueses em lançarem-no entre nós, o escritor declara que não tem objecções, antes pelo contrário. "Pessoa é um dos meus escritores preferidos. Deitaram abaixo Salazar e agora têm um governo decente. O terramoto de Lisboa inspirou Voltaire a escrever 'Candide'. E Portugal ajudou milhares de judeus a fugirem da Europa durante a guerra. É um país bestial. Eu nunca lá estive, é claro, mas, queira ou não queira, é lá que eu vivo agora. Não, Portugal é perfeito." (pág. 132)
sábado, 15 de janeiro de 2005
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