domingo, 13 de fevereiro de 2005

Discussão de "Eu hei-de amar uma pedra", de António Lobo Antunes

Como já seria de esperar, o livro não foi recebido com agrado por todas as leitoras. Algumas optaram mesmo por desistir da sua leitura por manifesta falta de entusiasmo. A Ana quis fazer uma declaração, logo no início da reunião, explicando os motivos que a levaram a abandonar a leitura. Disse então, que até começou por aderir ao estilo que a foi, a pouco e pouco, começando a maçar. A dada altura sentiu algum desconforto por, de certa forma, se sentir gozada pelo autor. A Guida, em tom de brincadeira, disse que há muito não conseguia dormir tão bem, e que as duas paginazinhas diárias antes de deitar lhe asseguravam umas descansadas nove horas de sono. Na página 180 teve uma revelação e finalmente percebeu o enredo da obra. A partir daí conseguiu passar para as quatro páginas!

A Rita gostou muito do livro, e achou que se trata da bonita história de uma mulher que vive ao longo de quase toda a sua vida uma paixão não muito sofrida, serena, sempre à distância, mas fazendo parte da vida do seu amor, nos encontros às Quartas-feiras na hospedaria da Graça, nos passeios a Sintra ao Domingo, e mesmo nas férias de Verão em Tavira. Sofre quando não pode acompanhá-lo no funeral, sendo a amante de um homem casado. Segundo a Rita, esta mulher é, ela própria a pedra de que fala o título. É uma mulher que sofreu uma experiência traumática na adolescência – foi violada – e adquiriu uma frieza e uma impermeabilidade muito grandes. É de todos os narradores da obra aquela de quem temos menor acesso aos pensamentos e emoções. É uma espécie de sombra. A esta ideia de que esta personagem seria a “pedra” eu retorqui que, mais do que isso, e pela leitura do poema popular de onde a frase do título saiu -Eu hei-de amar uma pedra/deixar o teu coração/uma pedra sempre é mais firme/tu és falsa e sem razão (na íntegra mais abaixo) – o título referia-se à incapacidade das personagens para amar e serem amadas. Refere-se à falsidade e frieza da maior parte dos corações que remete as personagens para uma solidão quase absoluta, entregues às suas obsessões (as gaivotas do Beato, as fotografias do sr. Querubim, os antúrios, as arvéolas, o chapéu com cerejas, o mar, etc. etc.). A Isabel também frisou a incapacidade das personagens em dar-se. Concluímos que a relação mais perfeita retratada nesta obra é aquela estranha relação de um homem e uma mulher que se encontram durante cinquenta e tal anos, uma tarde por semana, numa sórdida hospedaria da Graça, alugada à hora a prostitutas e prostitutos e seus clientes. É uma relação que também tem muito de rotineira (as Quartas na Graça, os passeios a Sintra, Agosto passado em Tavira, dois toldos acima), mas apesar disso há uma constância e uma harmonia que não vemos nas outras relações. A Ana Lúcia sublinhou o que essa relação tinha de estável, mas também o seu carácter de aventura, pelo facto de ser ilícita. Estivemos a tentar descortinar até que ponto seria uma relação com uma componente carnal, ou meramente platónica. A Rosária referiu a passagem em que se diz que passavam as tardes sentados ou deitados lado a lado na cama da hospedaria e em que só esporadicamente se tocaram, o toque de uma mão sobre outra, ou quando ela o punha ao seu colo, como uma criança. A Paula disse que tinha ouvido também o Lobo Antunes falar sobre esta história em entrevistas e que se tratava de um acto de abnegação, em que nunca tinha existido uma entrega física.

A São, a nossa convidada desta sessão, assistiu a uma conferência do António Lobo Antunes em que o autor refere esta história, verídica, de uma paciente sua e dizia na altura que um dia haveria de contá-la. Falámos um pouco sobre o próprio autor e a sua personalidade difícil. A Jennifer ficou com uma opinião negativa do seu carácter, pelas entrevistas que leu e viu na televisão. A São discordou, considerando-o um ser humano excepcional, apenas uma pessoa tímida. A Rita também discordou e remeteu para uma entrevista que foi publicada como livro e que ela tem (falhou-me a referência bibliográfica). A Jennifer também admitiu que nas crónicas que Lobo Antunes publica na Visão parece ser uma pessoa genuinamente tocada pela dor dos outros. A Rita referiu ainda que, pela leitura que fez dessas entrevistas e da fotobiografia do autor, lhe parece que muitas das situações narradas no livro lhe parecem auto-biográficas, como, por exemplo, a relação que o protagonista estabelece com as filhas, o facto de quase todas as personagens cultivarem a solidão. Eu referi ainda a personagem do médico psicanalista, que poderá ter funcionado como um alter-ego do autor. A Ana Cristina, ainda no que diz respeito à personalidade do autor, contou um episódio engraçado. Quando perguntaram ao pai do Lobo Antunes o que achava de irem publicar uma fotobiografia do filho espantou-se muito e disse: “Mas porquê? A vida dele não tem interesse nenhum!”. Outra possível marca autobiográfica na obra é o facto do personagem principal ser uma pessoa muito marcada pela guerra em África, tal como Lobo Antunes que a refere em quase todas as suas obras.
A Rita também mencionou que, de todas as obras de Lobo Antunes que já leu, esta é a primeira em que aparece uma referência ao próprio acto da escrita. Eu lembrei uma passagem em que aparece no texto que um determinado pormenor foi inventado pelo António Lobo Antunes, na tentativa de melhorar o romance. Na última narrativa refere também a dificuldade em dar a obra por terminada. E a certa altura atribui a autoria do enredo à filha da madrinha da mãe do pimpolho, enquanto intermediária entre o autor e todas as outras personagens. Eu lembrei ainda uma passagem em que “explica” a estrutura narrativa do livro: uma história de amor, inventada por esta personagem, e colocada na boca de cada uma das outras personagens que se relacionaram com os amantes.

Tivemos algumas dúvidas quanto ao destino de algumas personagens, nomeadamente se a Raquel se teria suicidado com comprimidos, ou se a senhora amante do pimpolho se teria afogado. A propósito destas dificuldades na interpretação do texto, a Ana “queixou-se” que essas dificuldades, as coisas deixadas em aberto, as imprecisões a desmotivaram na leitura, ao que a Rita lhe respondeu com graça que, como disse o Umberto Eco, a obra era aberta. A Rosária também se manifestou algo incomodada com todas as coisas supérfluas que enchem o texto, o ruído criado por aquelas repetições de frases, palavras. Eu respondi-lhe que isso era o universo das obsessões de cada uma das personagens a manifestar-se.
A Ana Lúcia também teve uma saída engraçada. Disse que era curioso que estivéssemos a ler este livro numa altura em que surgem tantas entrevistas com a pintora Paula Rego, e que estava perfeitamente a ver a Paula Rego a pintar algumas cenas e personagens do livro.

No geral, e resumindo, tivemos três pessoas que aderiram completamente ao livro. A Rita achou lindo e muito comovente. A Ana Cristina adorou, e eu achei também muito tocante, e achei que o estilo no qual está escrito não é minimamente artificial mas que se coaduna perfeitamente com a história que está a ser contada e a forma como isso é feito. Marca a diferença e torna o livro verdadeiramente excepcional. O resto das leitoras foram mais cépticas, mas o livro acabou por nos fornecer matéria para uma discussão bastante animada e muito profícua.

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