sexta-feira, 29 de abril de 2005

A Ana enviou-nos um interessantíssimo artigo sobre a autora e obra que estamos a ler de momento:


A alma histórica em Cassandra de Christa Wolf


Sílvia Caldeira
Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa

Nascida em 1929 dentro do antigo império alemão, em Warthe, na actual Polónia, Christa Wolf cresce sob a ameaça político- extremista nazi e, ao contrário do que seria de esperar pelo regime, torna-se escritora independente, transformando-se no olhar frio e realista que revela o clima de guerra e o clima social repressivo da antiga RDA. Será esta luz mórbida nazi que dará temática aos três primeiros romances desta escritora: Der Geteile Himmel (1963), Nachdenken uber Christa T.(1969) e Kindheitsmuster (1976).

Em Der Geteile Himmel é-nos exposta a dolorosa divisão interna dos alemães; em Nachdenken uber Christa T. e Kindheitsmuster revela-nos os últimos anos da Segunda Guerra Mundial e a fase inicial da RDA. Em toda a obra de Christa Wolf estará sempre presente o brasão de quem viu e viveu no ambiente sufocante e ameaçador da RDA, no entanto, com Kassandra (1983), Christa Wolf inaugura uma visão ideológico-estrutural reformulada e já muito mais ponderada: a miscigenação do mito e da literatura, do mito e da realidade, para transmitir o eterno reviver da dor da guerra, e quem melhor do que a profetisa condenada a não ser acreditada para o explicar?

Foi com a Guerra de Tróia que pela primeira vez se uniu mito e literatura com realidade e foi esta fatídica guerra que serviu de tema às primeiras obras tradição ocidental, os Poemas Homéricos. Contudo, o que o aedo homérico nos transmite é o ideal heróico daqueles que caem no campo de batalha, o defender másculo da honra e da dignidade, a sede feroz de sangue e de glória dos guerreiros. O que Christa Wolf oferece ao mundo com Kassandra é a visão feminina da guerra, o relato na primeira pessoa de uma das mais importantes princesas de Tróia: a sacerdotisa de Apolo. Cassandra, que no momento derradeiro da sua vida conta a sua experiência da guerra, é a metáfora de todas as mulheres que viveram e das que provavelmente irão viver esse clima aterrador onde pelo seu sexo, considerado fraco, não combatendo a frente inimiga, mas procurando assegurar a estabilidade mínima da sua pátria e acabam sendo humilhadas, insultadas, comandadas como se não soubessem pensar por si, violadas, assassinadas ou abandonadas na vida com uma criança no seio daquele que a violou.

Sob esta visão solitária de uma mulher sobre o seu mundo, Christa Wolf faz renascer com Kassandra o antigo mito grego para nos permitir “medir-nos a nós mesmos”, reconhecermo-nos uns aos outros na “alma histórica”, na alma do mundo. Tendo particular intenção de fazer coincidir o drama de Cassandra com o contexto espiritual alemão, Christa Wolf deixa no ar aquela pergunta que o coração não deixou escrever, mas a mente vislumbrou: estarão todas as mulheres condenadas por um deus impassível a serem-lhe submissas sob a ameaça de jamais serem acreditadas? Será este um castigo vigente só em tempo de guerra? Até onde terá de ir a submissão feminina? Estas são perguntas que a escritora não escreve mas deixa na mente do leitor.

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