segunda-feira, 26 de maio de 2008

As excepções à regra

- Cada coisa – replicou o meu pai moderada e judiciosamente, furtando-se, como era seu hábito, a qualquer discussão -, cada coisa no mundo tem pelo menos duas faces, como todos sabem aliás, a não ser essas almas frenéticas…
Eu não fazia ideia do que eram "almas frenéticas", mas sabia muito bem que não era o momento de perguntar. Permaneceram mudos e quedos um diante do outro quase durante um minuto, exibindo ocasionais momentos de silêncio semelhantes a uma rendição; só depois intervim:
- Excepto a sombra!
Com os óculos encavalitados a meio do nariz e meneando a cabeça para cima e para baixo, o meu pai fitou-me de soslaio com aquele olhar que exprimia o sentido bíblico de “Esperava que produzisse boas uvas, mas produziu uvas azedas”. Por cima dos óculos espreitavam uns olhos azuis que reflectiam um óbvio desapontamento comigo, com os jovens em geral e com o fracasso do sistema educativo: pensava que tinha enviado uma borboleta e que lhe haviam devolvido uma crisálida.
- Que queres dizer com “sombra”? Só se for a da tua cachimónia! – disse ele.
A minha mãe atalhou:
- Em vez de o mandares calar, não seria melhor procurares inteirar-te do que ele está a tentar dizer? Ele quer exprimir qualquer coisa.
- Pois muito bem. Sim, na verdade. Então, queira Vossa Excelência fazer o obséquio de esclarecer o que pretende dizer. A que misteriosa sombra se deve a sua comunicação? À sombra das montanhas, tomada pelas montanhas? Ou à sombra pela qual suspira o escravo?
Levantei-me. Ia deitar-me e não lhe daria qualquer explicação. Todavia, respondi com brandura:
- Excepto a sombra, papá! Disseste há momentos que no mundo tudo tem pelo menos dois lados. Estiveste quase próximo da verdade. Mas esqueceste-te de que a própria sombra, por exemplo, tem apenas um lado. Verifica se não acreditas. Podes mesmo fazer uma ou duas experienciazitas. Afinal, tu próprio me ensinaste que não há regra sem excepção e que nunca se deve fazer generalizações. Esqueceste-te por completo do que me ensinaste.
Levantei-me então, pus a louça na banca e fui para o meu quarto.

Amos Oz, Uma Pantera na Cave, Lisboa: Edições Asa, 1998, pp. 14-15.

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