domingo, 8 de janeiro de 2006

Discussão de “A misteriosa chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco

Com uns meses largos de atraso, aqui fica mais esta pequena contribuição para a preservação das memórias do nosso clube de leitura. Se bem se lembram, a discussão realizou-se numa tarde deliciosa à beira de uma piscina, e as minhas tentativas de escrever algumas notas cedo se transformaram numa pasta informe de papel e tinta de esferográfica.
Ficam aqui apenas meia dúzia de notas de que me lembro. O resto das leitoras estão, como sempre, convidadas a resgatar do fundo (bem fundo e distante) da memória o que mais se lembrem da nossa discussão.

A opinião geral foi favorável, com as leitoras a reconhecerem que se trata de um romance bem construído. Tivemos todas pena que as profusas referências culturais nos sejam, na maior parte, alheias. Pensámos, contudo, que este livro deve constituir uma leitura apaixonante para um italiano da geração de Umberto Eco.

A Ana Cristina estabeleceu um paralelismo com “De Profundis. Valsa Lenta”, de José Cardoso Pires, que descreve o mesmo tipo de experiência, de acordar do coma mas de forma mais sucinta e, a seu ver, mais bem conseguida.
A mesma experiência mas mais sucinta. Entretanto descobri um pequeno excerto da obra de José Cardoso Pires, que transcrevo:

“De resto, a desmemória não só o isolou da realidade objectiva, como o destituiu, pode dizer-se, de sentimentos. Perdeu os estímulos de aproximação porque, sem a consciência da identidade que nos posiciona e nos define num framework de experiências e de valores, ninguém pode ser sensível à valia humana do semelhante. As suas virtudes ou os seus males só podem ser reconhecidos como significantes sentimentais em contraponto com a consciência da nossa identidade, isto é, com a tradição da comunicação que praticamos com a sociedade e com a nossa memória cultural. A ele tal coisa estava-lhe vedada, memória onde tu já ias. Daí a total indiferença em que navegava à tona das comoções e dos afectos, uma indiferença extrema que, sucedesse o que sucedesse , não o levava a perturbar nem ao de leve a disciplina do ambiente. Na verdade, não sabia de todo onde se encontrava, a razão era essa.”
(José Cardoso Pires in De Profundis, Valsa Lenta)


Discutimos a figura de Lila e como ela é uma figura idealizada que se aproximava dos estereótipos da BD.


Eu referi ainda um pouco do que me lembrava das teorias literárias de Umberto Eco, nomeadamente aquilo que designa de Lector in fabula
Estabelece-se um pacto entre leitor e autor, que permite ao leitor aceitar como verdade os dados que lhe são descritos no livro. Essa verdade existe dentro do contexto específico do livro, obedecendo às regras inerentes ao próprio texto, ainda que estas sejam inválidas no mundo “real”, como é o caso da literatura fantástica. O leitor tem, no entanto, um papel preponderante na construção desse mundo. É ele que o vai construindo à medida que lê, com a memória do que leu para trás no próprio livro mais os bocadinhos de memórias de todos os outros textos que já leu, e experiências que já viveu.
O que me parece muito interessante neste livro é que o leitor constrói a leitura em simultâneo com a personagem principal. Partimos do mesmo ponto, nós leitores da página em branco do início do livro, ele protagonista da memória em branco após o colapso.

Falámos longamente sobre a questão da identidade e de como nós somos aquilo de que nos lembramos. Fora da moldura das nossas memórias, é difícil pensar em termos de identidade.

Gostámos particularmente do episódio do copo inquebrável, a composição escrita por Yambo aos onze anos e que marca uma viragem radical na sua maneira de ser. A composição relata a existência de um copo de vidro inquebrável, que repetidamente o protagonista testa. A dada altura, e perante visitas, decide exibir a magia do copo e, para seu grande espanto e pesar, o copo parte-se em mil estilhaços. Comenta o narrador:
“Naqueles estilhaços que, focados pelo candeeiro, brilhavam (falsamente) como pérolas, eu celebrava, aos onze anos, o meu “vanitas vanitatum”, e professava um pessimismo cósmico.
Tinha passado a ser o narrador de um falhanço, do qual representava o frangível correlativo objectivo. Tinha passado a ser existencial, embora ironicamente, amargo, radicalmente céptico, impermeável a qualquer ilusão.” (p. 198~9)

Também nos enterneceu o episódio do Bruno, o menino que fica órfão e se sente humilhado pela caridade dos colegas e o seu grito de “Furo!”, enquanto todos os outros gritavam “Juro!” ao juramento fascista. Foi o primeiro acto de revolta a que assistiu o protagonista.

A descida do Vallone foi também um dos episódios mais marcantes para as leitoras, uma espécie de rito de iniciação nas crueldades da vida adulta.

3ª parte – respostas a tudo –
A Rita referiu uma teoria dos espaços em branco de Eiser (?), que na altura me pareceu muito prometedora, mas entretanto se me varreu da memória. Vou tentar ainda discutir isso com ela.

E pronto, é tudo do que me lembro!

Sem comentários: