sábado, 24 de julho de 2004

E aqui fica também um artigo em português (brazuca) para quem tem mais dificuldade em ler em inglês:

Jornalismo à queima-roupa
A partir de um crime bárbaro no Kansas, Truman Capote produziu uma obra-prima da reportagem

Rodrigo Alves

Nos salões da alta roda ou na solidão da máquina de escrever, Truman Capote nunca foi de se render aos padrões vigentes. A sangue frio, sua obra máxima, já começa sob este signo. Subvertendo uma das regras mais básicas das escolas de jornalismo, o autor dribla o gesso do lead clássico e gasta quatro páginas com descrições de cenários antes de anunciar, numa frase curta e vaga, do que trata sua reportagem: ''Quatro disparos de espingarda que, no fim das contas, deram cabo de um total de seis vidas humanas.''
Mais adiante, o leitor vai descobrir que estas seis vidas eram de quatro membros da família Clutter - Herb, Bonnie, Nancy e Kenyon, friamente executados numa pequena cidade do Kansas - e seus dois assassinos, Dick e Perry, levados à forca quatro anos depois.
Descontada a carga trágica, a história em si não chega a ser um achado literário, mas foi o bastante para chamar a atenção de Capote na página 39 do New York Times em 16 de novembro de 1959. A matéria em uma coluna noticiava sem muito alarde: ''Um rico plantador de trigo, sua mulher e dois filhos foram encontrados mortos hoje em sua casa. Foram assassinados com tiros à queima-roupa, depois de serem amarrados e amordaçados.''
Passou um mês e lá estava Capote a caminho de Holcomb, uma cidade tranqüila do Meio-Oeste americano que passou a viver em pânico após o crime. A intenção do jornalista era registrar esta epidemia de medo num artigo para a revista The New Yorker. Sem pressa editorial, a apuração poderia durar várias semanas. Acabou durando seis anos, prazo impensável nas redações de hoje. O resultado, claro, foi muito além de um mero retrato do cotidiano local.
As dificuldades começaram com a resistência do investigador Alvin Dewey em conceder longas entrevistas. A população arredia também criava empecilhos e, por mais de uma vez, Capote cogitou abortar o projeto e voltar para casa. Quem o convenceu a seguir foi a amiga de infância Nelle Harper Lee, que o acompanhava na viagem.
Dewey já tinha aberto a guarda a ponto de se tornar um amigo quando os assassinos foram presos em Las Vegas, na antivéspera do Ano Novo de 60. Deu-se ali uma guinada sem volta nos rumos da reportagem.
A maior virtude de A sangue frio reside no apurado perfil humano que Capote desenhou nas duas extremidades da tragédia - as vítimas e os assassinos. Impressiona como o autor, tal qual um psicólogo, reconstrói os pormenores da vida dos Clutter e desvenda o que se passava na mente dos criminosos, numa proximidade perigosa que, acredita-se, cruzou as fronteiras do jornalismo.
Dick Hickock, mecânico que se divertia atropelando cães nas estradas, e Perry Smith, filho de um irlandês com uma índia cherokee alcoólatra, estavam mais próximos do repórter do que ele poderia supor. Na prisão, os bandidos viam em Capote o único elo com o que chamavam de ''mundo livre''.
Nem mesmo a condenação ao enforcamento, estabelecida em março de 1960, freou o ímpeto da apuração, que àquela altura reunia quase 4 mil páginas datilografadas. A primeira visita ao corredor da morte foi ''uma extraordinária e terrível experiência'', que impulsionou o trabalho nos três anos seguintes.
Entre inúmeras apelações judiciais, Dick e Perry continuavam à espera da forca, impondo ao escritor um dilema ético: a ansiedade para publicar o livro batia de frente com a certeza de que o ponto final só viria com a morte de duas figuras agora tão íntimas. A execução foi marcada para 14 de abril de 1963.
Capote chegou ao Kansas duas semanas antes, se esquivou como pôde da última visita, mas estava presente à cena final, como testemunha arrolada pelos réus. Perry escreveu sua carta derradeira uma hora antes de tombar do cadafalso: ''Sinto que Truman não tenha conseguido vir ao presídio para trocarmos umas palavrinhas antes da festa da gravata. Seja qual for o motivo, não o condeno e o compreendo. (...) Sou profundamente grato à amizade nesses anos todos, e por tudo mais. Seu amigo de sempre, Perry.'' Reza a lenda que este ''tudo mais'' era na verdade um romance, nunca confirmado.
Nada disso está no livro. Como bom jornalista, Capote não fez de si um personagem. Nas últimas páginas de A sangue frio, as execuções são narradas sem que o autor apareça em momento algum. O claro envolvimento é desviado, com notável talento, para a ótica das outras pessoas presentes no local: o investigador Dewey, o carrasco em seu terno de risca de giz, os guardas, as testemunhas.
Matinas Suzuki Jr. lembra no posfácio que a redação destas últimas páginas foi tão sofrida para Capote que sua mão ficou paralisada. Na biografia escrita por Gerald Clarke (publicada aqui pela editora Globo, com tradução de Lya Luft), o próprio autor reconhece o drama: ''Ninguém jamais saberá o que este livro tirou de mim. Arrancou-me tudo, até o tutano dos ossos. Quase me matou. Simplesmente não posso esquecê-lo, principalmente os enforcamentos no fim de tudo. Foi horrível.''
Com seus dois personagens mortos, Truman enxugou as lágrimas, voltou para Nova York e escreveu sua obra-prima. O que veio depois foi a glória. Em setembro de 1965, a New Yorker publicava a primeira das quatro partes de A sangue frio. No início do ano seguinte, a publicação da história em livro fez do autor uma figura onipresente na mídia americana. Jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV só falavam dele.
O elogios, claro, trouxeram críticas a reboque. A principal delas punha em xeque a veracidade do que estava escrito. Uma legião de repórteres famintos partiu para Holcomb em busca de depoimentos que denunciassem erros e distorções no texto. De fato, encontraram alguns personagens insatisfeitos com a falta de precisão dos relatos.
Mas Capote nunca deu o braço a torcer. ''O texto é imaculadamente factual'', defendia-se. ''Ninguém passa quase seis anos num livro cujo ponto crucial é a precisão factual e depois comete pequenas distorções.'' O fato é que ele confiava muito na própria memória. Não usava gravador ou sequer bloco de anotações, vangloriando-se da capacidade de registrar mentalmente longas conversas. É bem possível que as inevitáveis lacunas desses registros tenham sido preenchidas com leves incursões literárias do autor.
Gerald Clark, que antes de embarcar em seu livro recebeu uma quase-ameaça do biografado _ ''Não vou respeitá-lo a menos que você diga a mais completa verdade'' _, garante que a última cena de A sangue frio é completamente inventada. O encontro casual entre Alvin Dewey e a melhor amiga de Nancy Clutter no cemitério de Garden City nunca teria acontecido. Servira apenas para atenuar o drama das execuções e dar um desfecho mais ameno à história.
Capote se julgava dono do gênero que resolveu chamar de non-fiction novel (romance sem ficção, como prefere traduzir Ivan Lessa, na apresentação). Ou seja, qualquer indivíduo que se aventurasse por este terreno deveria, ao menos, agradecê-lo pela porta aberta. Quem não o reconhecia como precursor - Norman Mailer, Gore Vidal e Bob Woodward, por exemplo - virava desafeto. Havia muito de vaidade e marketing pessoal nesta atitude aparentemente egoísta. E uma certa negação ao passado recente: John Hersey, Rebecca West, Lilian Ross, Joseph Mitchell e um punhado de outros escritores já tinham feito reportagens com jeito de romance.
De certa forma, a expressão cunhada por Capote acaba reforçando uma inverdade: a de que o jornalismo, puro e simples, está condenado à escrita burocrática. Parece que, quando o texto atinge determinada qualidade, incorpora obrigatoriamente o adjetivo literário. Nem sempre. Até que provem o contrário, as 400 páginas de Capote são apenas jornalismo. Da melhor espécie. Assim como Hiroshima, de Hersey, e Os exércitos da noite, de Mailer, A sangue frio não precisa tomar um sobrenome emprestado da literatura para ganhar o carimbo de obra de arte.
O testemunho da primeira execução
O carrasco pigarreou (...) e Hickock, conduzido por um assistente, subiu os degraus do cadafalso. ''O Senhor dá, o Senhor tira. Bendito é o nome do Senhor'', entoou o capelão, enquanto o som da chuva se acelerava, enquanto o laço era ajustado e enquanto uma delicada máscara negra era ajustada ao redor dos olhos do prisioneiro. ''Que o Senhor tenha piedade de sua alma.'' A porta do alçapão se abriu, e Hickock ficou pendendo da forca diante de todos por vinte minutos, até o médico da prisão finalmente anunciar: ''Declaro que este homem está morto.''

A imprensa se repensa
[04/OUT/2003]

in JB Online http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2003/10/03/joride20031003002.html

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