segunda-feira, 22 de março de 2004

Tendo em conta que a autora é mais conhecida pela sua poesia, e também porque se comemorava no dia da reunião do clube o dia mundial da poesia, foram lidos alguns poemas de Natália Correia durante a reunião:

A propósito da sua utilização magnífica da língua portuguesa e do facto de já raramente se ver prosa escrita assim, foi lido um poema seu, precisamente sobre o desvirtuamento do português:

LÍNGUA MATER DOLOROSA

Tu que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda a bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luiz Vaz a chama joalhada

tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,

eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.

Já na glote és cascalho és malho és míngua,
De brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca


Como saberão, ando às voltas com as utopias. A esse respeito, lemos um poema sobre a ilha encoberta, um tema recorrente na obra de Natália Correia:

Aquela Ilha esquecida
Que eu habito adormecida
Que, à noite, eu vou habitar;

Aquela Ilha encantada
Que não se encontra de dia,
Pois fica na madrugada;

A Ilha não descoberta,
Onde a criptoméria aberta
Espalha em volta o luar;

A Ilha desconhecida
Que pelos caminhos do sonho
Se mostra a quem a buscar.

Àquela Ilha distante,
Não há ninguém que se afoite...

Aquela Ilha esquecida
Que só tem um habitante:
Eu que lá vivo de noite...



Este outro, ouvimo-lo da boca da própria Natália, durante o visionamento do documentário:

O LIVRO DOS MORTOS

Quando me derem por morta
de lágrimas nem uma pinga:
um trevo de quatro folhas
tenho debaixo da língua.

Está em regra o passaporte.
Venha o Limite da idade.
Não me chorem, não é morte
é só invisibilidade.

Túnel, poço ou espiral
suga a alma. Fica o corpo.
Vai-se a cópia sideral
e isso não é estar morto.

É assombro e estranhez
por não ser o céu ainda.
Há que morrer outra vez.
Demanda de Deus não finda.

Já noutro modo de ser,
Eterna, é contudo breve
a vida! Sempre a ascender
fica cada vez mais leve.

Até que – é esse o endereço –
já não é precisa a alma.
Unido o fim ao começo
Espírito encontra a morada.

De lembrar cessa o sentido
onde está tudo na Glória.
Por isso pelo caminho
foi-se perdendo a memória.

Por favor, em funeral
não me ponham pranto à volta.
Isso do choro faz mal
a quem do peso se solta.

Aqui parecendo cadáver,
indemne à carne, não morta,
já em frente vou na nave
que eu tenho um trevo na boca.

E se a sombra me queimarem,
bem hajam. Não sou católica.
Mas se missa me rezarem
pela alma, não me importa.

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