Discussão de "A Madona" de Natália de Correia
Desta vez as opiniões foram unânimes: estamos perante uma grande obra e uma grande escritora.
Ao contrário de "Cosmópolis", que deu azo a uma discussão algo acalorada, pela divergência de pontos de vista, quando as opiniões coincidem as discussões tendem a ser mais serenas, havendo menos lugar para polémicas. Foi o que sucedeu. Todas nos congratulámos pela excelente escolha. Congratulámo-nos também por ver a nossa língua portuguesa tão bem tratada, e por uma mulher. Lamentámos o facto de Natália Correia, especialmente a sua prosa, ser tão pouco lida hoje em dia. Poderá dever-se ao facto de ter sido uma figura pública altamente politizada e polémica. Ou por ser uma voz dissonante, e ainda por cima mulher, género a quem as dissonâncias continuam infelizmente a ser bastante menos toleradas.
Deliciámo-nos com a leitura de alguns trechos sublinhados, por os acharmos especialmente bonitos. Achámos que descreve particularmente bem o amor físico, sempre com alguma dimensão de espiritualidade. Como exemplo da sensualidade da sua escrita:
“Mas o impulso que nos fazia rodopiar, esfregar nos troncos dos cedros, sentir sob os pés nus o verde arrepio da relva, mergulhar as mãos nos cabelos dos arbustos e beijar a boca húmida das flores, era um grito que sentia formar-se em meu ventre e sei que danço porque quero ser amada e amar na vertigem de ser amada e sei que danço porque em meu tronco rebentam dois verdes frutos que querem sazonar-se na estação do amor.” (p. 11)
Para além da beleza da linguagem, todas concordámos que o conteúdo é bastante profundo, filosófico. Insere-se indubitavelmente na linha dos existencialistas (de recordar que a obra foi publicada em 1968). A Ana Lúcia comentou que ao ler "A Madona" lhe surgiam ecos de Sartre (não quererás desenvolver um pouco este tema, Ana Lúcia? Ou a outra Ana, que não pode assistir à reunião, não quererás opinar?)
As personagens estão muito bem desenvolvidas, sendo muito mais importantes que a trama em si, que pouco mais é do que colocá-las em confronto.
Para a Rita as personagens do Anjo e do Miguel têm algo de irreal, de transcendente, podendo constituir projecções da personagem de Branca. A Cristina, no que se refere ao Anjo concordou que a personagem, vista através dos olhos de branca, não era mais do que uma projecção dos seus próprios desejos, como se pode ler neste trecho: “No fundo, o Anjo não passava daquilo que todos somos. Um prodígio cuja aparência e realidade surtem da ilusão óptica das paixões que nos entrelaçam.” (p. 124). No entanto, e no que diz respeito a Miguel, a personagem pareceu-lhe bastante real, nas suas virtudes e defeitos. Confessou que a personagem lhe começou a agradar mais a partir do momento em que começou a ser exposta toda a sua crueldade (a cena fortíssima em que desmascara o anjo) e, especialmente, quando o leitor fica a conhecer o seu percurso a partir do momento em que Branca o abandona. Todas ficámos particularmente horrorizadas com a violência da cena das duas irmãs. Fizemos mesmo um paralelo entre a forma como esse horror surge relatado e a prosa de José Luís Peixoto, que, em comparação nos parece agora menos original.
Ainda no que se refere à crueldade das personagens, a Cristina confessou ainda que, apesar de estar longe de se considerar sádica (!!), também a personagem de Branca se tornou mais real, mais tangível, a partir do momento em que surge o seu lado mais cruel, quando submete Manuel a uma série de humilhações físicas e sexuais e daí retira prazer. Torna-se mais humana (paradoxalmente mais desumana) e isso aproxima-a dos leitores.
Referimos também com particular agrado a forma tão perspicaz, e ao mesmo tempo tão sensível, como define as mulheres. Sublinhámos particularmente duas passagens:
“Até na miséria os homens procuram ser perfeitos. Com as mulheres é diferente. Nós não vivemos as nossas verdades. Vivemos a realidade. É por isso que somos incongruentes e loucas.” (p. 157)
“Talvez as mulheres sejam monstruosas porque no fundo só podem amar aqueles que sofrem. Mas é nisso que elas são sublimes.” (p. 182)
A seguir à discussão da obra, assistimos a um documentário intitulado “A senhora da rosa”, sobre a vida e obra de Natália Correia que afortunadamente para nós tinha passado no canal 2 na semana passada e que a Isabel gravou. Em termos de grafismo e de concepção estética o documentário era de um tremendo mau gosto (a cara da Natália dentro de um botão de rosa a abrir e fechar o programa, uma pianista entrevista através de um véu de tule cor-de-rosa e outros demais exageros poéticos de cariz bastante kitsch). No entanto, em termos de conteúdo foi bastante importante para todas, na medida em que ficámos a conhecer bastante melhor a figura de Natália Correia, em toda a sua abundância e excesso. Também nos foi muito grato ouvirmos alguns dos seus poemas ditos por ela própria, apesar de um certo dramatismo em excesso na forma de ler poesia, que estará um pouco datada.
Já agora... um pequeno trecho que me esqueci de referir mas que acho que define bem o carácter abundante e excessivo da escrita da autora e, a avaliar pelos testemunhos que ouvimos no documentário, também do seu próprio carácter: “´É preciso sonhar em voz alta, amar em voz alta, odiar em voz alta, mijar em voz alta, fornicar em voz alta, ultrajar os bons costumes.” (p.7) É pena que cada vez mais as vozes andem baixinhas, não é?...
segunda-feira, 22 de março de 2004
etiquetas:
Natália Correia
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário