segunda-feira, 29 de março de 2004

Caríssimas:
queria apenas sublinhar uma passagem do livro que muito me agradou (e que
não consegui encontrar durante a reunião!):

"Estúpida civilização que não percebe que definha porque atrofiou o
sentimento! Quero o meu ciúme vivo, entendes? É o que me resta de
individualmente criador. Abomino essas relativas verdades que cultivamos
como um banho de lixívia que empalideceu o ciúme. Somos definitivamente
misteriosos uns para os outros. Não atentemos contra o amor que se alimenta
desse mútuo mistério." (p. 185).

Boas leituras.

Ana Cristina

quarta-feira, 24 de março de 2004

Para a Isabel:
A propósito da referência em "A Madona" às mitológicas "cadelas de Lyssa" aqui fica uma explicação:
(Grécia). É um demónio infernal que representa a raiva canina. Tem aspecto de mulher jovem, de cuja cabeça sai uma cabeça de cão. É provável que se trate da elaboração tardia de uma figura mais antiga com cabeça de cão.

in Izzi, Massimo "Diccionario ilustrado de los monstruos. Ángeles, diablos, ogros, dragones, sirenas y otras criaturas del imaginario" Palma de Mallorca: Alejandría, 2000.

segunda-feira, 22 de março de 2004

A pedido de muitas famílias partilho ainda outro poema, composto por Natália Correia e dito na assembleia como resposta a um deputado do CDS quando se discutia a despenalização do aborto (já em 1982...)

"O acto sexual é para fazer filhos" - disse ele
Um poema de Natália Correia a João Morgado (CDS)

"O acto sexual é para ter filhos" - disse, com toda a boçalidade, o deputado do CDS no debate de anteontem sobre a legalização do aborto. A resposta em poema, que ontem fazia rir todas as bancadas parlamentares, veio de Natália Correia. Aqui fica:

"Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o orgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado."

in "Diário de Lisboa", 5 de Abril de 1982

A próxima leitura é: "A louca da casa" de Rosa Montero.
Sugiro, desde já, a consulta da página pessoal da autora, é bastante rica:

http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/montero/index.htm

boas leituras!!

Tendo em conta que a autora é mais conhecida pela sua poesia, e também porque se comemorava no dia da reunião do clube o dia mundial da poesia, foram lidos alguns poemas de Natália Correia durante a reunião:

A propósito da sua utilização magnífica da língua portuguesa e do facto de já raramente se ver prosa escrita assim, foi lido um poema seu, precisamente sobre o desvirtuamento do português:

LÍNGUA MATER DOLOROSA

Tu que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda a bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luiz Vaz a chama joalhada

tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,

eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.

Já na glote és cascalho és malho és míngua,
De brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca


Como saberão, ando às voltas com as utopias. A esse respeito, lemos um poema sobre a ilha encoberta, um tema recorrente na obra de Natália Correia:

Aquela Ilha esquecida
Que eu habito adormecida
Que, à noite, eu vou habitar;

Aquela Ilha encantada
Que não se encontra de dia,
Pois fica na madrugada;

A Ilha não descoberta,
Onde a criptoméria aberta
Espalha em volta o luar;

A Ilha desconhecida
Que pelos caminhos do sonho
Se mostra a quem a buscar.

Àquela Ilha distante,
Não há ninguém que se afoite...

Aquela Ilha esquecida
Que só tem um habitante:
Eu que lá vivo de noite...



Este outro, ouvimo-lo da boca da própria Natália, durante o visionamento do documentário:

O LIVRO DOS MORTOS

Quando me derem por morta
de lágrimas nem uma pinga:
um trevo de quatro folhas
tenho debaixo da língua.

Está em regra o passaporte.
Venha o Limite da idade.
Não me chorem, não é morte
é só invisibilidade.

Túnel, poço ou espiral
suga a alma. Fica o corpo.
Vai-se a cópia sideral
e isso não é estar morto.

É assombro e estranhez
por não ser o céu ainda.
Há que morrer outra vez.
Demanda de Deus não finda.

Já noutro modo de ser,
Eterna, é contudo breve
a vida! Sempre a ascender
fica cada vez mais leve.

Até que – é esse o endereço –
já não é precisa a alma.
Unido o fim ao começo
Espírito encontra a morada.

De lembrar cessa o sentido
onde está tudo na Glória.
Por isso pelo caminho
foi-se perdendo a memória.

Por favor, em funeral
não me ponham pranto à volta.
Isso do choro faz mal
a quem do peso se solta.

Aqui parecendo cadáver,
indemne à carne, não morta,
já em frente vou na nave
que eu tenho um trevo na boca.

E se a sombra me queimarem,
bem hajam. Não sou católica.
Mas se missa me rezarem
pela alma, não me importa.

Discussão de "A Madona" de Natália de Correia


Desta vez as opiniões foram unânimes: estamos perante uma grande obra e uma grande escritora.
Ao contrário de "Cosmópolis", que deu azo a uma discussão algo acalorada, pela divergência de pontos de vista, quando as opiniões coincidem as discussões tendem a ser mais serenas, havendo menos lugar para polémicas. Foi o que sucedeu. Todas nos congratulámos pela excelente escolha. Congratulámo-nos também por ver a nossa língua portuguesa tão bem tratada, e por uma mulher. Lamentámos o facto de Natália Correia, especialmente a sua prosa, ser tão pouco lida hoje em dia. Poderá dever-se ao facto de ter sido uma figura pública altamente politizada e polémica. Ou por ser uma voz dissonante, e ainda por cima mulher, género a quem as dissonâncias continuam infelizmente a ser bastante menos toleradas.

Deliciámo-nos com a leitura de alguns trechos sublinhados, por os acharmos especialmente bonitos. Achámos que descreve particularmente bem o amor físico, sempre com alguma dimensão de espiritualidade. Como exemplo da sensualidade da sua escrita:
“Mas o impulso que nos fazia rodopiar, esfregar nos troncos dos cedros, sentir sob os pés nus o verde arrepio da relva, mergulhar as mãos nos cabelos dos arbustos e beijar a boca húmida das flores, era um grito que sentia formar-se em meu ventre e sei que danço porque quero ser amada e amar na vertigem de ser amada e sei que danço porque em meu tronco rebentam dois verdes frutos que querem sazonar-se na estação do amor.” (p. 11)

Para além da beleza da linguagem, todas concordámos que o conteúdo é bastante profundo, filosófico. Insere-se indubitavelmente na linha dos existencialistas (de recordar que a obra foi publicada em 1968). A Ana Lúcia comentou que ao ler "A Madona" lhe surgiam ecos de Sartre (não quererás desenvolver um pouco este tema, Ana Lúcia? Ou a outra Ana, que não pode assistir à reunião, não quererás opinar?)

As personagens estão muito bem desenvolvidas, sendo muito mais importantes que a trama em si, que pouco mais é do que colocá-las em confronto.
Para a Rita as personagens do Anjo e do Miguel têm algo de irreal, de transcendente, podendo constituir projecções da personagem de Branca. A Cristina, no que se refere ao Anjo concordou que a personagem, vista através dos olhos de branca, não era mais do que uma projecção dos seus próprios desejos, como se pode ler neste trecho: “No fundo, o Anjo não passava daquilo que todos somos. Um prodígio cuja aparência e realidade surtem da ilusão óptica das paixões que nos entrelaçam.” (p. 124). No entanto, e no que diz respeito a Miguel, a personagem pareceu-lhe bastante real, nas suas virtudes e defeitos. Confessou que a personagem lhe começou a agradar mais a partir do momento em que começou a ser exposta toda a sua crueldade (a cena fortíssima em que desmascara o anjo) e, especialmente, quando o leitor fica a conhecer o seu percurso a partir do momento em que Branca o abandona. Todas ficámos particularmente horrorizadas com a violência da cena das duas irmãs. Fizemos mesmo um paralelo entre a forma como esse horror surge relatado e a prosa de José Luís Peixoto, que, em comparação nos parece agora menos original.
Ainda no que se refere à crueldade das personagens, a Cristina confessou ainda que, apesar de estar longe de se considerar sádica (!!), também a personagem de Branca se tornou mais real, mais tangível, a partir do momento em que surge o seu lado mais cruel, quando submete Manuel a uma série de humilhações físicas e sexuais e daí retira prazer. Torna-se mais humana (paradoxalmente mais desumana) e isso aproxima-a dos leitores.

Referimos também com particular agrado a forma tão perspicaz, e ao mesmo tempo tão sensível, como define as mulheres. Sublinhámos particularmente duas passagens:

“Até na miséria os homens procuram ser perfeitos. Com as mulheres é diferente. Nós não vivemos as nossas verdades. Vivemos a realidade. É por isso que somos incongruentes e loucas.” (p. 157)

“Talvez as mulheres sejam monstruosas porque no fundo só podem amar aqueles que sofrem. Mas é nisso que elas são sublimes.” (p. 182)

A seguir à discussão da obra, assistimos a um documentário intitulado “A senhora da rosa”, sobre a vida e obra de Natália Correia que afortunadamente para nós tinha passado no canal 2 na semana passada e que a Isabel gravou. Em termos de grafismo e de concepção estética o documentário era de um tremendo mau gosto (a cara da Natália dentro de um botão de rosa a abrir e fechar o programa, uma pianista entrevista através de um véu de tule cor-de-rosa e outros demais exageros poéticos de cariz bastante kitsch). No entanto, em termos de conteúdo foi bastante importante para todas, na medida em que ficámos a conhecer bastante melhor a figura de Natália Correia, em toda a sua abundância e excesso. Também nos foi muito grato ouvirmos alguns dos seus poemas ditos por ela própria, apesar de um certo dramatismo em excesso na forma de ler poesia, que estará um pouco datada.


Já agora... um pequeno trecho que me esqueci de referir mas que acho que define bem o carácter abundante e excessivo da escrita da autora e, a avaliar pelos testemunhos que ouvimos no documentário, também do seu próprio carácter: “´É preciso sonhar em voz alta, amar em voz alta, odiar em voz alta, mijar em voz alta, fornicar em voz alta, ultrajar os bons costumes.” (p.7) É pena que cada vez mais as vozes andem baixinhas, não é?...

terça-feira, 2 de março de 2004

Ana Lúcia
Concordo que é óptimo estarmos a recuperar autores portugueses.
Mas é ainda melhor que esse autor seja uma autora portuguesa. Não tinha ideia do que era a escrita de Natália Correia. Sabia da poesia, mas, nunca tinha lido nada. Conhecia a figura e sempre me despertara curiosidade.
Como disse a nossa colega Ana Cristina: - "uma pessoa delicia-se com cada frase".
Para relembrar:
Foi a Isabel que sugeriu, a Isabel não esteve nesta última reunião, nem em nenhuma até agora mas já influencia na escolha. E vai estar na próxima reunião.