Discussão de “A Louca da Casa” de Rosa Montero
9 de Maio de 2004
Ao contrário do último livro – “A madona”, de Natália Correia – que recebeu o louvor e aclamação de todas, no que diz respeito a este livro as opiniões dividiram-se. Houve quem tivesse gostado bastante, outras mostraram-se mais comedidas e cépticas.
A Jennifer manifestou alguma desilusão com o facto das referências auto-biográficas serem, no fim de contas, ficcionadas – como o facto de não existir uma irmã Martina ou o episódio com o actor M. ser pura invenção. A Jennifer explicou que não foi por esses apontamentos e personagens serem ficcionais que se desiludiu, mas o facto de ter acreditado à partida que se tratava de referências auto-biográficas. Criou uma expectativa que depois viu gorada. No fundo, é como se não se tivesse assinado o pacto de ficção que se estabelece por norma entre escritor e leitor, e que permite que aceitemos como reais, dentro do contexto da narrativa, as personagens e acontecimentos de uma obra. Nada nos tenha indicado que se tratava de ficção e, como tal, aceitámos como mundo real o que era apenas um “mundo possível”, utilizando a expressão de Umberto Eco para designar os mundos ficcionais. A Cristina contestou, na medida em que considera que mesmo as auto-biografias nunca se escapam de uma boa dose de efabulação. Além disso, considera que têm uma existência tão importante para ela as personagens reais como as ficcionais. A ficção pode retratar a realidade de uma forma muito mais certeira que o que aceitamos como factos reais. O texto é sempre uma construção e à sempre manipulação, seja no noticiário, no documentário ou na narrativa ficcional. Aliás, este é um dos pontos mais veiculados ao longo da obra, por isso é curioso que a expectativa de que os acontecimentos fossem verídicos tenha originado esta discussão.
A Ana achou que, apesar do livro conter ideias muito interessantes, muitas delas já não eram novas, e acabavam mesmo por ser clichets.
A Jennifer e a Isabel acharam que em algumas passagens a autora revelou ser um pouco reaccionária. Não conseguiram situar especificamente onde lhes ficou essa impressão, mas parece-lhes, por exemplo, que a autora não se mostrou suficientemente crítica do regime franquista. Também a associação da língua do Terceiro Reich enquanto língua do totalitarismo e a língua basca lhes pareceu abusiva. A Cristina também concordou, especialmente tendo em conta que a língua basca é uma das mais antigas da Europa. A Paula argumentou que o que estava em causa era o discurso dos bascos e concretamente dos etarras e não a língua em si. Uma releitura do trecho deu-lhe razão. No entanto, todas concordaram que, especialmente tratando-se de uma questão espanhola, e que levanta tantas susceptibilidades, devia ter sido omitida ou então explicada com maior rigor, e não simplesmente “atirada” em duas ou três linhas.
Algumas leitoras manifestaram algum desagrado pela atitude, a seu ver, algo presunçosa da autora, na medida em que enaltece a figura do escritor, como se se tratasse de uma pequena elite de “iluminados” que se distinguem do comum dos mortais. A Ana admitiu que teria sido mais fácil aceitar este livro se viesse de uma autora que admirasse à priori. A Cristina salientou o facto da autora ser bastante conhecida (e reconhecida) em Espanha, pelo que conseguiu apurar pela leitura de alguns documentos disponíveis na página on-line de Rosa Montero. O facto da autora ser até agora desconhecida entre as leitoras do clube (só a Paula havia já lido anteriormente duas obras da mesma) tornou mais difícil que lhe reconhecêssemos legitimidade para se auto-incluir desta forma no cânon dos escritores.
Foram relembradas algumas passagens do livro que mais impressionaram as leitoras, como os três casos que menciona no capítulo em que trata sobre a falta de comunicação entre as pessoas. Refere o caso da menina judia que toda a sua (curta) vida esteve nas mãos de cientistas nazis que a utilizaram para testes médicos. Aos cinco anos não emitia uma única palavra porque ninguém se havia dado ao trabalho de a ensinar a falar. Outro caso que também impressionou foi o da chimpanzé Lucy, que havia sido ensinada a utilizar gestos para comunicar e que foi deixada num jardim zoológico, onde freneticamente repetia os gestos “tirem-me de aqui”. A Ana Lúcia recordou já ter visto um documentário na TV sobre o caso, mas a história era bastante diferente: a chimpanzé tinha sido deixada no Zoo por questões burocráticas e tinha posteriormente sido levada para um laboratório, onde tinha sido utilizada para testar vacinas de hepatite. A Cristina também já tinha lido algo a respeito e ficou de procurar a referência. Por último foi relembrado o caso do romeno surdo que foi internado em Nova Iorque numa instituição de saúde mental durante 10 anos porque ninguém tinha conseguido comunicar com ele e, pura e simplesmente, concluíram que era louco. O caso foi pretexto para se discutir a desumanidade com que eram tratadas as pessoas em instituições do género e também em lares de terceira idade e lamentámos a incapacidade da nossa sociedade, ao contrário de sociedades orientais, de valorizar as pessoas mais idosas e a sua sabedoria.
Discutiu-se o tema de um dos capítulos: se há uma escrita de mulheres. A autora começa por negar que haja uma escrita que seja especificamente feminina, que é apenas mais uma contingência biográfica que condiciona o autor, tal como a sua proveniência geográfica, o tipo de educação, a classe social, a religião, etc. No entanto, um pouco mais adiante tem uma afirmação que, de certa forma, contraria esta: “ahora que nuestra participación en la vida literaria se ha normalizado, disponemos de una total libertad creativa para nombrar el mundo. Y hay unas pequeñas zonas de la realidad que sólo nosotras podemos nombrar.” (p. 177). Então afinal há áreas distintamente femininas. A autora refere como exemplo as metáforas de sangue, que enquanto metáforas femininas são sinónimo do ciclo de vida. É, de facto, uma questão complexa. É que, por muito que nos pareça absurdo considerar que há uma escrita eminentemente feminina (aliás têm sido feitos vários testes submetendo trechos a leitura e procurando descortinar se foram escritos por homens ou mulheres e os resultados foram inconclusivos), por outro lado, custa-nos (a nós mulheres) a admitir que não haja temas e motivos que sejam mais nossos, que a nossa sensibilidade feminina não saiba melhor tratar. Claro que também podemos dizer que há homens que têm mais desenvolvida uma sensibilidade feminina e vice-versa, mas ainda assim não resolve a questão. Falou-se que esta é uma ambiguidade que caracteriza o próprio feminismo: por um lado lutar pela igualdade, por outro lado preservar e valorizar a diferença. Recordámos ainda, a este propósito, o nosso orgulho na última reunião do clube que aquela escrita superior pertença a uma mulher – a Natália Correia, e admitimos que sentimos orgulho quando uma mulher é distinguida numa das nossas áreas de eleição.
Discutiu-se uma das ideias do texto – de que somos seres múltiplos, de que contemos em nós múltiplas existências. A esse propósito lembrámos Fernando Pessoa, e como foi capaz de reflectir essa multiplicidade na sua obra.
Achámos curiosas as várias formas mencionadas de categorizar os autores. A primeira é de Isaiah Berlin e divide os autores em “ouriços” e “raposas”, respectivamente, os autores que se “enrolam” sobre si mesmo e acabam por andar sempre à volta dos mesmos temas (eu acho que Paul Auster é um pouco assim, há temas e motivos recorrentes nas suas obras), e os peregrinos, que em cada obra exploram território diferente e procuram palmilhar o mais que podem. A distinção não é valorativa, pois os “ouriços” podem ir mais fundo nas suas análises, enquanto que as “raposas” podem chegar mais longe.
Outra classificação curiosa é de Italo Calvino, entre escritores de chama (que constroem as obras a partir das emoções) e escritores de cristal (que a constroem a partir da racionalidade). Ainda Calvino distingue também entre escritores que utilizam a leveza da palavra e escritores que utilizam o seu peso. Rosa Montero distingue entre os memoriosos, que enchem as obras de referências e pormenores, e os amnésicos, que abdicam destes e deixam ficar apenas o essencial. É interessante, como mero exercício, ler os livros tendo em conta estas categorizações e procurar situá-las num campo ou outro.
A Ana Cristina gostou particularmente do capítulo que tematiza a loucura. A autora já havia identificado a imaginação, ou, mais genericamente, o acto de criar, com a loucura (aliás patente no próprio título da obra). Neste capítulo volta a fazê-lo e sugere que as pessoas loucas estão mais próximas de uma compreensão da totalidade, ou melhor, são os que não se contentam com a versão “domesticada” do mundo que criámos como única forma de o compreender: “La realidad no es más que una traducción reductora de la enormidad del mundo y el loco es aquel que no se acomoda a ese lenguaje.”(página 192 da edição española).
À Cristina agradou especialmente a última história contada no livro, sobre a freira do convento de clausura, que, uma vez na vida, quis sair do convento e observá-lo pela janela da casa em frente. Admirou a beleza do convento e voltou a ele, para não mais o abandonar. A história é uma parábola da necessidade de nos abstrairmos de nós mesmos como única forma de realmente nos conhecermos. A maior viagem que podemos empreender na vida (e é disso que trata toda a literatura de viagem, ou, em última análise, mesmo toda a literatura) é a viagem de descoberta de nós mesmos, e essa só é possível se fizermos um esforço para nos vermos de fora, de uma perspectiva Outra. Temos que sair do nosso convento, uma vez que seja, para podermos vê-lo de fora, ter um vislumbre que seja da sua totalidade, da sua unidade, para depois podermos regressar a ele. O acto da escrita pode ajudar a esse processo, é o que diz Rosa Montero, mas também, e isso deve ser salientado, que o acto da leitura também o pode. “A louca da casa” é sobre a imaginação, ou sobre o acto da criação. Escrever é criar, mas ler também o é. Quando lemos um livro criamos a nossa própria narrativa, preenchemos os espaços em branco, os silêncios (talvez por isso constituam um desafio maior as obras dos autores “amnésicos”, na medida em que deixam mais espaços por preencher).
O balanço final da leitura do livro acabou por ser positivo. Apesar de, para algumas, pecar pela superficialidade, abordando uma miríade de temas mas não aprofundizando nenhum (será uma marca da escritora “raposa” que a Rosa Montero reconhece ser?), todas reconheceram que contém ideias muito interessantes, e pequenos episódios bastante marcantes. Algumas manifestaram mesmo interesse em reler parcialmente o livro após a sua discussão.
p.s. oh minhas amigazz…zzz! Por favor acrescentem de vossa justiça! Tenham em conta que é um tremendo exercício de memória tentar reconstituir a discussão do livro (e esta, hein, Rita? Bem a propósito do que falámos!) e que a nossa “acta” ficaria infinitamente mais rica se vocês contribuíssem com memorandos das vossas intervenções (ou outras reflexões que entretanto vos surjam).
segunda-feira, 10 de maio de 2004
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Rosa Montero
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