Aqui fica um artigo da Máxima, sobre o nosso próximo livro, enviado pela Ana:
Mafalda Ivo Cruz recebe Grande Prémio de Romance e Novela 2003
Lusa
A escritora Mafalda Ivo Cruz recebeu hoje, em Tróia o Grande Prémio de Romance e Novela 2003 da Associação Portuguesa de Escritores (APE), pelo seu romance "Vermelho". Na cerimónia, o Presidente da República, Jorge Sampaio, apelou à valorização da língua portuguesa.Na entrega do Prémio, Jorge Sampaio afirmou que a língua portuguesa deve ser considerada "uma prioridade, não apenas retórica, mas efectiva". "Quer isto dizer, com meios, com ambição, com estratégia, com vontade", sublinhou o chefe de Estado.Fazendo a ligação deste prémio com a Cimeira dos Países de Língua Portuguesa, em que participou na passada semana em São Tomé e Príncipe, o Presidente da República salientou o trabalho que alguns desses países fazem na promoção da língua portuguesa, nomeadamente através da pressão para que o português seja língua oficial em organismos internacionais."Este é o grande elo civilizacional com que nós temos assinalado a nossa presença no mundo", frisou.Sobre a premiada na 22ª edição do prémio, a cuja entrega Sampaio habitualmente preside, o Presidente salientou a juventude de Mafalda Ivo Cruz e o facto de ser mulher."Sabendo-se que a arte visa o universal, o aparecimento de tão boas escritoras não deixa de ser sintomático da transformação da nossa sociedade", destacou Sampaio, elogiando o papel do mecenato na solidificação da cultura portuguesa.Mafalda Ivo Cruz foi galardoada pelo seu romance "Vermelho" e reconheceu a importância deste prémio, até pelo valor monetário: 15 mil euros."Este prémio é uma grande ajuda: permite aos escritores que o recebem criar um espaço vital, sem interferir no seu trabalho", afirmou a autora aos jornalistas no final da cerimónia, lembrando que a profissão de escritora "é extremamente mal paga".O Grande Prémio de Romance e Novela é atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores desde 1982 e já premiou autores como Virgílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes ou Lídia Jorge.Patrocinam este galardão a Fundação Calouste Gulbenkian, o Instituto Camões, o Ministério da Cultura, a Sociedade Portuguesa de Autores, a Imprensa Nacional Casa da Moeda, a Câmara de Grândola e a Torralta.O júri que escolheu a obra, por maioria, foi este ano constituído por Margarida Braga Neves, Eduardo Prado Coelho, José Carlos Seabra Pereira, Júlio Moreira, José Correia Tavares e Maria Isabel Barreno.Mafalda Ivo Cruz nasceu em finais dos anos 50, concluiu o curso de piano no Conservatório de Lisboa, foi bolseira do Governo francês durante três anos, em Paris, e dedicou-se ao ensino em Portugal e em França.Sobrinha do maestro Manuel Ivo Cruz, foi colaboradora de algumas publicações periódicas, caso do suplemento "Mil Folhas" do jornal Público, da revista Rodapé, da Biblioteca de Beja, e da Colóquio-Letras."Um requiem Português" (1995), "A Casa do Diabo" (2000) e "O Rapaz de Boticelli" (2002) são algumas das suas obras já publicadas.
Mafalda Ivo Cruz - A dança da escrita
por Leonor Xavier -fotografia de Pedro Ferreira
O que significa ser artista? Através do mundo do ballet, a escritora tenta responder a esta pergunta no seu mais recente romance. Nascer numa família de músicos colocou-a no cerne da questão.
Fala muito depressa, quase murmura mais do que diz, pula de uns para outros assuntos, diverte-se com os comentários que em paralelo vai inventando. Pelo sangue herdou o sentido de humor, a criatividade, a imaginação que fazem da família Ivo Cruz uma referência de afectos, de momentos partilhados, de muitas histórias contadas. Desde sempre Mafalda Ivo Cruz terá ouvido essas histórias, desde pequena conviveu com a ideia de que a conversa é o centro de todas as coisas, exercício maior de inteligência.
Define-se como conservadora no rigor da educação e também desde sempre co-nheceu a arte como razão de ser, profissão e modo de vida, numa família que vai já na quarta geração de músicos. Depois do curso de piano feito no Conservatório de Lisboa, foi pianista e bolseira do governo francês em Paris, cidade onde viveu desde os anos 80 até 1999, quando voltou para Portugal.
Sem imaginar que lhe pudesse acontecer, a escrita surprendeu-a: "Vejo-me como uma pessoa que tem a escrita como o melhor instrumento de comunicação, a imagem de escritora é um acidente, é um acaso que me aconteceu." Acaso que foi considerado uma fantástica revelação, pelas críticas elogiosas de Eduardo Prado Coelho e de Fátima Maldonado ao seu livro de estreia, Um Requiem Português, publicado em 1995. Autora de mais dois romances, A Casa do Diabo (2000) e O Rapaz de Botticelli (2002, ambos das Publicações D. Quixote), está agora a escrever o seu quarto livro com o apoio do Ministério da Cultura, através de uma bolsa de criação literária para o ano de 2002.
Se não tivesse sido pianista e escritora, Mafalda Ivo Cruz teria uma outra vocação perfeitamente definida: "Podia ter sido bailarina se tivesse um bom corpo e bons professores. Mas viveria sempre nesse meio que me apaixona. Faço dança todos os dias, como era pianista preciso de actividades físicas." Curiosa, inquieta, interessada, é sistemática na avaliação do mundo que nos cerca: "Não saio de Portugal desde que voltei, há três anos. Ando a ver tudo o que há a ver, vou aos espectáculos sempre com um olho crítico, de uma maneira egocêntrica, à procura do que me convém. Quando escrevemos, somos cobaias de nós próprios."
Falamos na sala de casa, desfilam inter-rupções, assuntos cruzados, sentimentos, comentários de outras casas em outros tempos, e muitas pessoas de querer bem invisíveis, a passar por ali. Não sabe Mafalda Ivo Cruz como é comovente o seu livro, pretexto para a conversa, O Rapaz de Botticelli.
Raro e requintado livro, importante, as páginas correm a construir-se e desconstruir-se. Incrível. Logo nas primeiras, um fragmento ilustra o pensamento de Mafalda Ivo Cruz: "Subi para cima do pequeno palco que nos servia para ensaiar e fiz uma variação 'Corsário'. Sem música. À medida que caía a noite. Só se ouvia o barulho surdo dos meus pés, nos saltos, e o barulho da respiração. Fazia tudo com facilidade, embora me sentisse tenso. A respiração só se tornou arquejante no final. No momento em que o professor se aproximou e me entregou a minha toalha e disse com ar pensativo, 'sim, pode dançar'. E eu arquejava, dobrado para a frente com as mãos apoiadas nos joe-lhos. Tinha feito a coisa mais importante da minha vida. E então encarámo-nos e começámos os dois a rir. 'A técnica, Cage, a técnica. Sim, Efron Cage, pode dançar.'"
"O livro passa-se todo no ambiente do ballet e bastidores. É um testemunho inspirado pela história dos bailarinos, é um livro de amor, é uma maneira de guardar as coisas e de contar as pessoas, é um álbum de família. Há um caroço sobre o qual se vão alargando camadas. Se me perguntarem quem é que inspirou o papel principal, digo que essa pessoa não existe, que é uma articulação de várias coisas e de várias pessoas reais. Mas antes de mais, gostava de falar do Alexei, um bailarino que aparece no livro e que tem uma história muito interessante. Ele é russo, cresceu no Ballet Bolchoi, foi para lá pequeno, preparado para fazer uma carreira na dança. A avó nasceu em 1904 e vivia numa grande casa da família, uma daquelas casas aristocráticas que depois da Revolução foram ocupadas e divididas em apartamentos comunitários. Em 1917, ela tinha 13 anos e estudava piano." Foi o ano da revolução na antiga União Soviética.
Mafalda Ivo Cruz - A dança da escrita
por Leonor Xavier -fotografia de Pedro Ferreira
"Quando vieram os comissários despejar a casa, havia um piano de cauda de concerto que não cabia nas escadas, e por isso atiraram-no do terceiro andar. Enquanto viveu, a avó ouvia sempre aquele estrondo do piano a partir-se todo na rua. Em 1936, ela foi deportada para o Cazaquistão, considerada inimiga do povo por ter casado com um estrangeiro, apesar do marido ter sido fuzilado nos anos 20. Quando era mais crescida, ela fazia dança. O Alexei é parecido com a avó, identifica-se com ela. Entretanto, o pai, que era um cientista pró--Brejnev e que fazia bombas, passou a pertencer à classe da nomenclatura, o que dava à família uma vida protegida, fácil, com férias no Mar Negro e todo o conforto. Em 1989, o Bolchoi desfez-se, os bailarinos começaram a emigrar, ele foi para a Grécia, onde ficou algum tempo antes de vir para a Companhia de Dança de Lisboa. Apaixonou-se por uma portuguesa, resolveu ficar em Portugal. Depois de ter saído da CDL, foi percebendo as dificuldades da vida fora da Companhia, o que é muito duro para um bailarino que nunca tinha tido contacto com esta realidade. Começou a dar aulas, é o meu professor de dança, estava a morrer de saudades de dançar, reuniu um grupo de oito pessoas que formaram o Projecto Fokine, para fazer ballet clássico, hoje quase banido porque tudo é dança contemporânea. Começaram a trabalhar sem ajudas nem subsídios, fizeram um guarda-roupa inteiro com todo o dinheiro que tinham. Foram à Guarda, não havia condições para o espectáculo mas apesar disso fizeram-no, ninguém teve o menor cuidado com eles, a sala estava quase vazia, não os acompanharam ao comboio, da Câmara Municipal apareceu um representante. Foi uma solidão. O Alexei tem paixão por aquilo que faz, é mal pago mas vive com essa paixão, isso é muito bonito. Trabalha, é muito mais culto que os europeus."
Os elementos do Rapaz de Botticelli vão-se desenhando, através das reflexões de Mafalda Ivo Cruz, em alusões e descrições, são o conjunto variado de experiências vividas, de ambientes, de glórias e fracassos, numa sequência nem sempre lógica. Almada Negreiros tem um espaço na narrativa, com as suas facetas de bailarino e coreógrafo.
"Fiz um trabalho sobre o Nijinsky. A partir desse artigo, o Luís Gaspar [ilustrador] telefonou-me por causa da ligação de grande amizade que o Almada Negreiros teve na juventude com a minha avó. Começaram a juntar-se coisas: a minha avó e uma das mi-nhas tias fizeram um jornal chamado Paradoxo. Pelo Gonçalo Melo Breyner conheceram o Almada, e transformaram o seu clube de meninas num clube futurista. O Almada fez a coreografia de uns bailados que elas dançaram, com músicas de Schumann e Grieg também escolhidas por ele. Na época, o Almada teve uma paixão pela minha tia, que tinha 16 anos, e a minha avó no meio dos dois fingia que não sabia de nada."
A entrevista que no livro é feita por Mariana ao crítico de arte Delfim Sardo, sem lhe alterar o nome, foi na realidade uma conversa de Mafalda Ivo Cruz com "um professor que é adorado pelos alunos e que é uma pessoa adorável", num ambiente de grande emoção, como conta: "Durante essa conversa, estava irritada com a pobreza dos bailarinos, estava a escrever sobre isso, o que é um artista e o que é a vida trágica desses profissionais que não têm dinheiro nem sequer um sindicato, que são uns corsários, uns malucos. Os bailarinos de quem eu falava queriam fazer ballet clássico, mas só há subsídios se o ballet clássico for considerado uma actividade pedagógica, o que dificilmente acontece. Estava a falar com um crítico de arte contemporânea numa atitude provocatória, cheguei a ser agressiva e ele, calmamente, como quem fala com uma aluna, disse-me: 'Ponha-se com essas coisas e ainda lhe vai acontecer como ao Jean Clair, director do Museu Picasso, que passou a escrever numa revista de extrema-direita.' Sai o Vasco Graça Moura, três meses depois, a confirmar o que o Delfim tinha previsto, com uma série de artigos em que toma posições extremamente agressivas em relação à cultura, aos subsídios, à política cultural."
E há em O Rapaz de Botticelli uma pergunta que tudo explica através de Efron Cage, o protagonista, seu auge e decadência, ou a razão de ser do livro: "Além de motivações pessoais, porque é que fazemos isto, porque é que os artistas fazem arte, como é que a gente está a lidar com coisas profundas que até podem ser perigosas, até que ponto nós lidamos com isso." Questão enunciada em escrita: "[...] E que o nosso navio era enorme. E que éramos uma fraternidade de homens e mulheres temíveis que se lançavam no mar, alguns por ganância outros porque procuravam o seu próprio renascente, o seu próprio monstro. Outros ainda porque tinham a vocação de lutar com a morte. Ou apenas porque se batiam e sabiam bater-se bem, muito bem. Muitíssimo bem, mesmo. No nosso rasto ficava um inferno de gritos e dor e sangue e luto. Mas o nosso horizonte era, claro, radioso. A mais clara das auroras. E, sim. Foi a minha vida."
O avô de Mafalda Ivo Cruz fez o curso de Direito e estudou composição na Alemanha, foi compositor e director do Conservatório Nacional. O pai, Manuel Ivo Cruz, é maestro, e a mãe, Dinorah Leitão, é pianista. Os três irmãos têm a música por motivo: Nuno é flautista na Orquestra Sinfónica Portuguesa e casado com uma flautista americana. Miguel toca viola de gamba e violoncelo na Capela Real, um conjunto de música bar-roca, e faz mestrado no Conservatório em Haia. Rui, não sendo músico, é técnico de pianos e trabalha no Teatro de S. Carlos. O sobrinho Tiago Alvim, filho de Miguel, é pianista, usando o nome da mãe. O tio, Duarte Ivo Cruz, é professor de História de Teatro no Conservatório. E a avó paterna foi uma presença essencial para a formação e personalidade desta neta mais velha: "A mi-nha avó tomou muitas vezes conta de mim, vivi muito com ela, perto dela, ao colo
dela, a sensação que me foi transmitida é a de que não compreendo bem a vida fora desse âmbito mental que ela me contava através das histórias da família Burnay, uma família muito louca, cheia de episódios movimentados. A minha avó teve uma infância fantástica e uma vida brilhante, fora das normas. Tinha uma irmã com um ano de diferença, que morreu, tinham uma ligação fortíssima. A minha avó foi educada a acreditar que tinha de ficar direita acontecesse o que acontecesse, nunca se ia abaixo."
Quando se reúnem, são talvez originais por terem em comum o tema Conservatório Nacional: "Nos almoços de família juntamo-nos todos a falar da 'loja', ficamos muito unidos a falar da Rua dos Caetanos." A música "não é uma graça" que se faça de improviso, na sala de estar. Entre os pais, hoje separados, a mesma música teria sido motivo de controvérsias: "Era uma relação crispada porque havia coisas profissionais." Vivem ao invés dos ritmos gerais: "Não há fins-de-semana, os dias acabam às três da manhã, nunca nada está pronto, é sempre preciso recomeçar."
Casada há 20 anos, o marido médico foi na vida real uma das personagens ficcionadas por José Cardoso Pires em A Balada da Praia dos Cães, e motivo de inspiração para o primeiro romance de Mafalda Ivo Cruz: "Comecei a escrever por causa da história dele, uma história bonita vista pelo lado da mãe, francesa, que era linda. No livro eu encarnei a mãe, queria protegê-lo, fui à procura das histórias de infância, dos tempos de escola. Acabei Um Requiem Português em 1994. Escrevi-o a correr, em Paris, na cozinha da casa, onde fazia tudo ao mesmo tempo. Encontrei o editor da Presença, que o publicou em 1995." O segundo li-vro, A Casa do Diabo, lançado em 2000, escrito "para continuar uma possibilidade aberta", depois de entregue, esperou muito até ver a luz do dia: "Pus o manuscrito nas Publicações Dom Quixote, esperei resposta durante um ano, estava para ser devolvido, mas afinal, em vez disso, tive uma reunião marcada com o Nelson de Matos."
Entre os escritores que tem conhecido, confessa uma admiração intensa por Leonel Brim: "Tenho um contacto muito estreito com ele, foi um encontro raro, é bem educado, é de uma imensa cortesia. E na escrita tem uma fluência, uma agilidade, uma perfeição. Em Julho de 1999, quando comecei a escrever no suplemento Leituras, do Público, fiz uma recensão sobre um livro
dele, Magistério e Desgosto, da Bizâncio. Foi um livro dificílimo, duro e agressivo, de uma grande qualidade. Depois pedi-lhe emprestado outro livro, Talvez Pinóquio, escrito há 15 anos, que não chegou a ser distribuído, que é um deslumbramento. O Leonel Brim ultrapassou a questão do ego dos escritores, que é muito complicada. Até aos 50 anos hesitou entre ser cineasta ou pintor, é casado com uma artista plástica, é um mestre."
Este ano de 2002, Mafalda Ivo Cruz não pode escrever em jornais, porque a exclusiva dedicação ao próximo romance lhe é exigida pelas regras da sua bolsa de criação literária.
"O tema do quarto livro é a loucura, é o discurso da loucura levado ao extremo", adianta. Não tem rotina, tempos certos de criação, dá ideia que tudo lhe vai nascendo por dentro, a expressão dos olhos sugere que sim. "Não sou disciplinada, escrever com prazo é uma aflição, ando sempre a correr, angustiadíssima", diz.
Sobre ser difícil de ler, não é por isso que se aflige: "Dizem que sim, as coisas são como são, escrevo como sei escrever, não sei fazer mais fácil." Tão simples como isto. E a verdade é que quem lê o seu texto não o esquece mais, leva-o na vida real e tem-no ao vivo em extraordinários sonhos.