Na sequência do aniversário de morte do nosso querido autor de momento (Truman Capote), junto ao nosso blog um artigo publicado ontém no jornal Publico. Boas leituras.
Truman Capote Por KATHLEEN GOMESQuarta-feira, 25 de Agosto de 2004
O encantador e a serpente
Sobre Truman Capote, James Wolcott escreveu na revista "Vanity Fair" que "ele tanto era o encantador de serpentes como a própria serpente". É uma dessas definições invejáveis, verdadeiramente "à la Capote": eficaz, certeira, profunda, mordaz.
De Capote se pode dizer uma e outra coisa: por exemplo, que foi um autor que fez da escrita uma experiência estética, e que foi um "poseur", um arrivista dado às mundanidades que só tinha um objectivo em mente - a fama.
Uma forma de resumir este Truman Capote dois-em-um é dizer que foi a mais fascinante figura literária da era dos "talk-shows". As suas primeiras e últimas aparições televisivas constituem a cartografia da ascensão e queda de um mito, entre o menino-prodígio que nos anos 50 minimizou a obra de Jack Kerouac ("não é escrita - é dactilografia") e o velho que se tornara um embaraço no final da década de 70 e que apareceu bêbado num programa de televisão depois de ter pedido ao apresentador para não falar dos seus problemas de alcoolismo.
Um e outro - o encantador e a serpente - não perderam o fascínio, 20 anos após a morte de Truman Capote. Por causa de um e de outro, ainda há quem resista em incluí-lo entre os grandes escritores norte-americanos do século XX. "Enfant terrible" da literatura americana do pós-guerra é aceitável, mas "grande escritor"?
Não ajuda que Capote tenha produzido uma obra mais ou menos dispersa, mais ou menos irregular, quase sempre sob a forma de pequenas narrativas (contos, novelas, ensaios), que não chegasse a terminar o seu prometido "opus" proustiano, que tivesse a pretensão de aproximar o jornalismo da arte literária.
Não ajuda, enfim, que as suas aspirações incluíssem "ser rico e famoso". "Eu tinha que ter sucesso e tinha que tê-lo cedo", afirmou em 1978. "O que acontece com pessoas como eu é que sempre soubemos o que íamos fazer. Muitas pessoas passam metade da vida sem saber. Mas eu era muito especial e tinha de ter uma vida especial. Não fui destinado a trabalhar num escritório ou algo do género, embora fosse certo que teria êxito no que quer que fizesse. Mas sempre soube que queria ser um escritor e que queria ser rico e famoso."
Ascensão...
E, apesar de tudo, criou e solidificou um estilo. No prefácio de "Música Para Camaleões" (1980) diz que pretendia alcançar "a credibilidade dos factos, a imediatez do cinema, a profundidade da prosa e a exactidão da poesia". As três últimas, pelo menos, são visíveis em "A Sangue Frio" (1965), espécie de texto sagrado da "nonfiction novel", da "reportagem narrativa".
Lendo entrevistas do autor à altura, e outros textos seus, tem-se a impressão de que foi um romance - de não-ficção, como dizia, mas ainda assim um romance - feito para provar uma teoria: a de que "a reportagem podia ser tão interessante e tão artística quanto a ficção".
Capote já tinha feito um ensaio com "Ouvem-se as Musas" (1956), relato da viagem à URSS da companhia de teatro americana de "Porgy and Bess", que é também um fresco sobre os equívocos e "clichés" com que a América via os russos e vice-versa.
Além disso, Capote tinha treinado intensamente a memória para não precisar de gravadores nem de blocos-de-notas nas entrevistas e reportagens. Para que nada interferisse entre predador e presa. Quando, a 16 de Novembro de 1959, o "New York Times" publicou uma pequena notícia sobre um homicídio múltiplo numa quinta isolada do Kansas, Capote partiu de comboio para o Midwest e durante seis anos trabalhou em "A Sangue Frio", recolhendo testemunhos, verificando pistas, privando com os assassinos até à execução da pena de morte.
O resultado foi uma obra sem precedente, que, numa extraordinária combinação de montagem paralela e detalhe, condensava uma espécie de fim trágico do sonho americano - as vítimas, os Clutter, pai, mãe, filha e filho, personificavam um modelo exemplar da família americana.
Norman Mailer, autor de "A Canção do Carrasco", no que viria a ser um dos episódios da célebre inimizade que o unia a Capote, descreveu "A Sangue Frio" como uma "falha de imaginação", pressupondo que um verdadeiro romancista deveria escrever sobre o seu imaginário e não sobre a realidade.
O que seria produto de intriga, mais do que qualquer outra coisa: um dos sortilégios de "A Sangue Frio" é a moldura tão impossivelmente real das personagens (mas tão potencialmente ficcional), a omnisciência do autor, a sua capacidade para reproduzir, por exemplo, os pensamentos de uma rapariga de 16 anos, Nancy Clutter - em suma, a sua habilidade para transcender a realidade.
Sobre a "credibilidade factual" que Capote tanto defendeu, cite-se o "Auto-retrato", de 1972 (incluído em "Os Cães Ladram", ed. Relógio d'Água): "A arte e a verdade não são necessariamente parceiros sexuais compatíveis."
A verdade é que Norman Mailer fez parte de uma minoria. "A Sangue Frio" foi pré-publicado em série na revista "New Yorker", estabelecendo um recorde de vendas, e o livro vendeu mais de 300 mil exemplares, permanecendo 35 semanas na lista de "best-sellers" do "New York Times". Capote, que já tinha ampla notoriedade, tinha conseguido: era rico e famoso.
Comemorou o êxito com um baile de máscaras no Plaza Hotel, Nova Iorque, em 1966: o "Black and White Ball", também conhecido como "a última grande festa americana", foi uma festa para mais de 500 "escolhidos", entre estrelas de Hollywood e uma elite aristocrática.
"A Sangue Frio" valeu-lhe um contrato milionário com a Random House, para um livro que o autor teria de entregar em dois anos. Ressentido pelo facto de o Pulitzer e o National Book Award terem ido para Mailer, Capote projectou o que ambicionava ser o seu legado canónico, uma espécie de "Em Busca do Tempo Perdido" contemporâneo, baseado nos seus diários, correspondência e anotações ao longo de anos: "Súplicas Atendidas".
... e queda
Viria a ser o seu eterno "work-in-progress", e um anti-clímax amargo: Capote não só não terminou o livro, como os excertos publicados na "Esquire" lhe custaram a amizade do que chamava os seus "cisnes" - mulheres da sociedade-caviar, o "jet-set" feminino com quem forjara cumplicidade tanto tempo.
Foi, sobretudo, o capítulo "La Côte Basque" que surgiu como uma traição: um relato de inconfidências feitas à mesa de um restaurante numa mistura de vícios privados, misoginia e muita, muita fofoca. Quando lhe pediram contas, respondeu: "O que é que eles esperavam? Sou um escritor e uso tudo. Será que todas aquelas pessoas pensavam que eu estava lá só para as entreter?" Capote refugiou-se no álcool e em anti-depressivos, assegurando a todos os interessados e não-interessados que continuava a trabalhar em "Súplicas Atendidas" - que permaneceu inacabado e foi publicado postumamente, em 1986, com os mesmos capítulos que tinham aparecido na "Esquire".
Morreu a 25 de Agosto de 1984, a pouco mais de um mês de completar 60 anos, em Los Angeles, na casa da amiga Joanne Carson, ex-mulher do apresentador de "talk-shows" Johnny Carson. No seu obituário, pelo sim pelo não, o "New York Times" citava o comandante da polícia de L.A.: "Não há qualquer indicação de que seja uma partida." Porque, afinal, Capote era capaz de tudo pela fama.
Andy Warhol relata nos seus diários que, em 1978, o "New York Times" publicou um artigo sobre Capote com uma fotografia "que não parecia Truman". "Parecia a mãe dele. Ele estava de pé na relva, com um chapéu de palha e um lençol que o fazia parecer grávido. (...) Ele disse: 'Olha, sou eu. Gostas?' E enquanto isso falava do artigo, que mencionava a palavra 'declínio'. E ele disse: 'Declínio? Que declínio? Sou o escritor sobre o qual mais se escreve no mundo.'"
quinta-feira, 26 de agosto de 2004
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